Sérgio Amaral é um ceramista que tem vindo a conquistar um lugar único no contexto da cerâmica portuguesa, cruzando, com as suas figuras antropomórficas – os matarrachos – os campos da plástica popular e da estética contemporânea. Paralelamente à sua produção artística, tem-se dedicado a transformar o seu atelier num espaço de contemplação e fruição, que funciona, de facto, como uma extensão da sua obra, e para onde canaliza uma parte considerável da sua criatividade e da sua atividade quotidiana. Nos últimos tempos, tem dirigido os seus esforços para a progressiva reconstrução do seu atelier, parcialmente destruído nos incêndios de outubro de 2017 e para a tentativa de abrir o espaço a outros artistas e artesãos: sente que chegou a altura de partilhar as suas técnicas e os seus conhecimentos, mas também o espaço que tão dedicadamente construiu ao longo dos anos.
Visitámos Sérgio Amaral em outubro de 2019. Após uma certa reserva inicial foi gradualmente revelando um pensamento aprofundado e uma sensibilidade apurada, proporcionando o que consideramos ser uma das mais interessantes e comoventes entrevistas que realizámos desde o início do projeto.
“Comecemos pelo princípio”: de onde vem o seu interesse pelo barro?
Tem uma longa história. Começou no início dos anos oitenta, por um motivo muito simples. A minha esposa na altura foi dar aulas para o Caramulo. Eu ia levá-la à segunda-feira e buscá-la à sexta-feira, e passava sempre em Molelos. Então, comecei a interessar-me por conhecer a olaria de Molelos. Nessa altura, constatei um facto: a olaria estava praticamente em vias de extinção. Isso fez-me pensar: porque não alguém dar uma certa continuidade a essa tradição? Falei, então, com artesãos que trabalhavam ainda pelos processos mais tradicionais, principalmente as queimas primitivas. O entusiasmo começou a crescer e eu comecei a aparecer mais vezes. Ia levar a minha esposa, mas já não ia só de passagem, ficava. A partir de uma certa altura, comecei também a experimentar, a trabalhar na roda e a fazer as minhas primeiras coisas. Paralelamente, ia-me apercebendo da forma de viver deles e das cozeduras que faziam. Faziam uma cozedura que, na altura, me despertou bastante curiosidade, a soenga, um buraco feito na terra onde as peças eram encasteladas. Passava-se ali uma manhã a contemplar o fogo, a interagir com tudo aquilo e o entusiasmo foi crescendo!
Que idade tinha?
Nessa altura era muito jovem, tinha vinte e poucos.
Qual era a sua profissão?
Nesse período, tirei o ano para acompanhar a minha esposa para o Caramulo, porque ela não tinha transporte e estava numa aldeia muito isolada.
Foi à escola, tirou algum curso?
Nessa altura não, foi só mais tarde.
A olaria estava praticamente em vias de extinção...
Nessas primeiras idas a Molelos, com que artesãos contactou?
Com os que trabalhavam com os meios mais tradicionais, com rodas primitivas. Construí a minha primeira roda, comecei a treinar e a fazer as minhas primeiras peças, que no início eram muito pesadas. Eu até brincava com isso nas feiras, que era melhor vender ao quilo que ganhava mais! [risos]
Lembra-se de algum artesão em especial?
O senhor Francisco, eu só o conhecia por senhor Francisco. Ele e a esposa eram umas pessoas muitas engraçadas. Ele estava sempre com maldade! [risos] O próprio facto de levarem as peças para a feira em Viseu era quase uma epopeia. Era difícil, eles tinham que fazer um carrego – como se chamava – com as peças à cabeça ou às costas, até ao autocarro e depois para a feira. Era algo que era vivido de forma muito especial. Eu achava isso interessante, porque as minhas ideias eram outras na altura, e o facto de recuar um pouco no tempo, recuar até ao íntimo dessas vidas, também me criou outras perspetivas. Era um modo de vida pura, com maldades sem serem maldade. Eram pessoas que trabalhavam no campo, paralelamente à olaria. O Senhor Francisco trabalhava no curral das cabras, a olaria era mesmo no curral! Ele, na verdade, trabalhava juntamente com os animais. Tinha a roda, umas prateleiras onde metia a louça a secar e os animais andavam simplesmente ali à nossa volta.
Era algo que era vivido de forma muito especial...
Nasceu onde?
Nasci aqui, nesta aldeia [Santa Luzia, Mangualde], só que fui jovem para Lisboa e até aos 19 anos vivi no Monte da Caparica, em Almada. Fiz lá a instrução primária.
Fez alguns trabalhos lá?
Eu fiz pintura nessa altura, com 16 anos. Mas… pronto, há coisas que até custam dizer, mas são verdade. Os meus pais achavam que isso não era vida e, conforme eu ia fazendo os trabalhos, eles iam desaparecendo e, hoje, dessa fase, não tenho nada. Tenho aquele [quadro de um] interior, de 1978, salvo erro. Dos anteriores não consegui ficar com nada. Este trabalho já é de uma fase em que os meus pais vieram novamente para a terra e em que já vivíamos aqui. Eu estava numa altura um pouco conturbada com alguns problemas, uma depressão. Fechei-me um tempo no quarto e só fazia interiores, o interior com sombras, muitas sombras.
Em que altura pensou em dedicar-se profissionalmente ao barro?
Foi na altura em que trabalhava na Citroën em Mangualde e eu não conseguia estar fechado naquela fábrica. Nessa altura, as pessoas ainda eram assim… pronto, não tinham culpa, claro, eram fruto da educação, da época, havia uma certa brutalidade, até na forma das pessoas falarem e agirem. Eu nunca gostei de lá estar, aquilo era uma prisão, era uma violação diária. Não era o meu meio, era muito industrial. A fábrica… aquilo estava a matar-me aos poucos. Nessa altura chamaram-me para ficar efetivo e eu disse que não, que não ia mais. Pedi desculpa e disse que não ia mais. A partir daí, comecei a fazer umas coisas em casa, foi nessa altura que construí uma roda. Aí começou uma fase familiar também um pouco má. A minha esposa queria que eu fosse professor. Eu fui fazer os exames ao magistério primário, mas eu não podia ser professor, não era isso que eu queria, nem nunca poderia ser. Então, fiz os testes e chumbei de propósito. Acho que a minha esposa ficou convencida de que aquilo não era para mim. E comecei a fazer barro.
Em que ano foi?
Acho que foi por volta de 1980. Construí o meu primeiro forno na casa dos meus sogros. E aí comecei a fazer e a cozer as peças. Forno que não era forno, era uma soenga, um buraco na terra. Depois, mais tarde, é que fiz um forno num atelier próprio. E só a partir daí é que comecei a viver a coisa com outra intensidade, com outra paixão. Porque, enquanto estive em casa do meu sogro, a paixão ia desvanecendo com tanta crítica! Eu compreendo, a filha era professora e eles queriam o melhor para a filha deles. Eu não seria feliz, nem iria fazer ninguém feliz como professor; pelo contrário, não era possível… Então, contra tudo e contra todos, comecei a fazer peças. Depois, fiz um atelier para fugir daquele ambiente e para poder estar comigo próprio, para poder criar. A partir daí, comecei mesmo a criar, com tanta intensidade que chegou ao ponto em que tive de contratar alguém para me ajudar, porque já vendia um bocadinho.
Contra tudo e contra todos, comecei a fazer...
Então começou a correr bem logo desde o princípio? Como divulgou o seu trabalho?
Sim. Tive a sorte de ter conhecido o senhor Celestino, que trabalhava na altura na Assembleia Distrital de Viseu. Ele ficou apaixonadíssimo pelos matarrachos e começou a convidar-me para ir à feira de São Mateus. Foi a minha primeira feira. Na feira de São Mateus encontrei um mestre, o Zé Maria de Ribolhos. Quando o conheci, o meu interesse por bonecos intensificou-se a um ponto que eu disse: “A partir de hoje só quero fazer bonecos!”. Aproveitando também o meu imaginário, que era bastante bom, a partir daí comecei a fazer os matarrachos, até hoje.
Começou, então, a trabalhar com a olaria de roda?
Comecei com os dois. Comecei pela olaria, mas nesse mesmo ano, enquanto ia fazendo outras peças, comecei com os matarrachos. Uma altura, não sei como nem porquê, surgiram-me aquelas formas, aquelas figuras. E eu espantado, perguntei: “Que raio é isto? Só podem ser matarrachos.” [risos] E ficaram os matarrachos. Foi mesmo assim! Para mim, a palavra matarrachos tinha a ver com pureza, com algo primitivo. As formas como que emanavam da terra, quase se transformavam a elas próprias. Não tinham anatomia, não tinham nada, mas eram significativas. E podia-se dizer: aquele é o músico, aquela é a peixeira... Nessa altura, eu retratava muito as pessoas que estavam à minha volta. Por exemplo, a peixeira acordava-me todos os dias às cinco da manhã, com uma corneta. Então, eu construí a peixeira e estendi-lhe o narigão até fazer uma corneta gigante! [risos]
Como procurou desenvolver o seu trabalho e as suas técnicas?
A partir de uma certa altura quis saber um pouco mais. Então, em 1988, salvo erro, fui para Galizes [Oliveira do Hospital]. Estavam lá a dar uma formação de roda, e eu fui lá tirar uma formação de dois anos. Anteriormente, já tinha também feito outras experiências. Ia vidrando algumas peças e colocava-as no meu forno de barro negro. Aquilo dava quase o raku. Eu não sabia o que estava a fazer, vidrava as peças e fazia experiências. Mais tarde, conforme fui descobrindo e estudando, fui vendo que o que eu estava a fazer já se fazia no Japão e na Coreia há milhares de anos. É a mesma redução primitiva mas com vidro, a uma temperatura mais elevada.
“Que raio é isto? Só podem ser matarrachos.”
Conseguiu desde o início ter um sucesso relativo que lhe permitia viver só da cerâmica, certo?
É mesmo um sucesso relativo, porque vivia com muita dificuldade. Havia pessoas que achavam piada às peças, mas outras não. Depois no atelier comecei a fazer outro tipo de peças, a fazer experiências e a ver o que as pessoas também gostavam. Comecei a fazer umas peças em barro negro e a desenhar e pintar flores, pessoas, casas… E não é que os espanhóis adoravam aquilo?! Adoravam! Então, comecei a vender para uma loja de Viseu e depois fiquei eu à frente da loja. Nessa altura, tinha um empregado, que me ajudava a fazer as peças. Um oleiro muito bom, um dos grandes oleiros aqui da região. Ele viveu muitos anos na Argentina, teve de regressar de mãos a abanar. Eu soube que ele andava a fazer uns potes para um senhor, fui ter com ele e ele veio trabalhar comigo.
Em que ano?
Final dos anos 80… Aí comecei a vender em quantidade, às vezes tinha encomendas de 600 peças! E eu fazia. Depois percebi que estava a vender muito barato. Estava a vender muito, mas não conseguia ganhar muito, apenas o suficiente para viver e, pelo menos, para calar a boca do meu sogro! [risos]
E conseguiu calar? [risos]
Não. Quando as pessoas têm erradamente expectativas em relação a nós… Querem que nós sejamos à imagem deles, como se alguém pudesse ser a imagem de outro… Nós somos individuais, temos uma identidade própria, cada um de nós. Nessa altura tive problemas psicológicos graves. Tinha dificuldade em comunicar. Se comunicava era mais através das coisas que fazia do que de outra forma, tinha muita dificuldade. Por isso nunca poderia ser professor. O professor tem que estar numa sala de aulas, tem que comunicar. Era impossível para mim.
Se tivesse de escolher alguns dos pontos altos da sua carreira, quais seriam?
Houve sempre momentos interessantes. Quando me convidavam para uma espécie de tours em vários países, eu sentia que havia gente que se interessava bastante pelo meu trabalho.
Quem o convidava?
Comissões de emigrantes, o ICEP [Instituto do Comércio Externo de Portugal]. Mas depois começaram a convidar-me muito e eu não me dava muito bem com essas coisas, em ter muita visibilidade. Imagine, eu estive na Áustria e fomos fazer um tour pelas cidades mais importantes da Áustria. E imaginem aonde íamos fazer as exposições: nos grandes hipermercados! Quando eu começava a trabalhar nessa roda aí, que era a roda do Zé Maria, era tanta gente em cima de mim que eu mal podia respirar! Eu ainda vivia assim num estado que nem era branco nem era preto, era uma coisa esquisita. E cheguei à conclusão que aquilo não era para mim, não me interessava essa visibilidade. E também me deixava um pouco perturbado. Quando chegava dessas digressões, estava um tempo sem conseguir produzir… Mais tarde, já nos anos 90, começaram a convidar-me para umas feiras da especialidade, e comecei a achar mais interessante. Depois, convidaram-me para ir ao Brasil e verifiquei que também havia interesse pelo meu trabalho no estrangeiro. Notei – e noto – que as pessoas já me reconheciam pelo meu trabalho, que são felizes com os meus matarrachos em casa, que os meus matarrachos são uma mais-valia para as pessoas. Isso realmente é uma enorme felicidade! Uma coisa também importante é que eu penso que tenho a capacidade de poder influenciar positivamente algumas pessoas, no sentido em que as coisas se podem encaminhar para que haja mudanças substanciais e que eu possa dar o meu contributo para um mundo melhor. Porque, infelizmente, acho que neste momento as pessoas, do meu ponto de vista, estão demasiado materialistas, olham muito para si próprias, para o seu umbigo, e esquecem-se que existem outras pessoas ao lado delas. Nós vivemos cá num todo, não somos eu, somos nós. E para tomarem consciência que nós somos pequeninos… Somos muito pequeninos! Se estivermos juntos podemos ser felizes, podemos usufruir de uma certa felicidade. Mas que só se justifica se essa felicidade for partilhada por todos. Nós temos que ser felizes mas só o poderemos ser verdadeiramente se tivermos consciência de que estamos a ajudar alguém. Ou, então, temos que ser mais e ter menos. Os incêndios [de outubro de 2017] foram uma grande lição, apesar de tudo. Foi dramático, foi catastrófico, as pessoas viveram um inferno. Mas também, por outro lado, veio dar-nos uma certa consciência de que, na verdade, nós não temos nada. Temos qualquer coisa, mas de um momento para o outro ficamos sem nada. Então, isto é tudo muito relativo. O maior sentido da vida é esse: é podermos eventualmente estar próximos dos outros e fazer com que os outros tenham alguns momentos de felicidade. Acho eu.
Sente que consegue transmitir isso com as suas peças?
Sim, sinto com os matarrachos. Pode ser até impressão minha, mas acho que não. Se não, as pessoas deixavam de comprar. Até porque as minhas figuras são muito rudes, quase que poderiam afugentar as pessoas. Mas não, há ali qualquer coisa que não é só material, há ali elementos que estão para além daquilo. E que, se calhar – eu não sou nada, e tenho essa consciência – mas acho que, se calhar, tenho essa capacidade de poder transmitir no que faço alguma coisa interessante, uma mensagem de… simplicidade. Os meus bonecos são muito simples, eles não têm anatomia, não têm nada, só têm expressão. E isso pode resumir-se tudo no amor que eles podem estar a espalhar. Penso eu, mas eu não sei porque nunca pergunto a ninguém, estas coisas não se perguntam.
Os meus bonecos são muito simples...
Como é a sua vida aqui no atelier?
A minha vida tem sido repartida entre a construção dos meus matarrachos e de outros projetos diferentes de intervenção. Mas também numa aproximação cada vez maior com a natureza. Tenho estado a construir isto tudo sozinho, aos poucos. Para mim, eu sou os matarrachos e também sou um pouco desta vivência com a natureza.
Fale um bocadinho de como construiu este espaço. Quando se instalou aqui?
No princípio dos anos 2000, talvez. Logo que cheguei aqui o desafio era começar a trabalhar, montar o forno, e criar um ambiente em que eu, depois das horas de trabalho, ou sempre que necessitasse, tivesse um espaço onde pudesse relaxar e de alguma forma me inspirar. Sempre gostei de fazer um pouco de yoga, de meditar. No início, eu saía do meu atelier, ia dar uma caminhada a pé e, quando me dava conta, perdia meio dia! Depois, cheguei à conclusão que aquilo que eu necessitava fora podia ter aqui perto com a mesma intensidade, sem perder tanto tempo. Primeiro comecei a plantar umas canas, foi a primeira coisa. Depois comecei a imaginar tudo, onde queria os lagos, onde queria os caminhos… Depois, sempre que surgia uma oportunidade, por exemplo, se num desaterro as pessoas estavam a levar a terra, eu pedia às pessoas para me darem a terra, eu pagava o transporte. Então, criei esses montes aí à volta. Depois passei noutro sítio e vi que estavam a retirar calhaus enormes, redondinhos, e eu imaginei logo todos os sítios onde queria colocar essas pedras, a ladear caminhos, num sítio onde tenho uma ilha, que até lhe chamo a ilha dos amores. E tem sido assim, a construir devagarinho, fazendo também aproveitamentos com aquilo que as pessoas não querem. Foi uma forma de aproveitar, mas também de não gastar tanto dinheiro nesse material novo. Essa era a ideia: ter um espaço que me pudesse transmitir tudo aquilo que eu ia buscar mais longe. É isso que hoje acontece: eu saio meia hora, pequenos bocadinhos, às vezes dois minutos, dou uma volta, entro no atelier e já não sou o mesmo. Cheguei a estar cinco anos sem sair daqui. Ia a casa dormir, mas voltava sempre para aqui, não fazia exposições nem nada. Foi a partir de um inverno bastante chuvoso e bastante fechado, em que eu não saía, estava aqui um pouco melancólico. O inverno quando fecha eu também fecho um pouco. [risos] Quando vem o verão, que alegria! Mas eu crio mais na primavera, quando explode tudo! Explodem as flores, os passarinhos, as árvores, e eu também expludo. A maior criatividade vem sempre na primavera. Mas é engraçado que depois o outono também costuma ser uma época boa, o cair da folha. Depois o verão é… morno, no aspeto criativo. O inverno é que é terrível, caraças, vejo-me lixado para fazer alguma coisa! Então, tenho de inventar, ouço música, leio, vejo filmes de arte… É a minha forma de ser, é assim.
Ter um espaço que me pudesse transmitir tudo aquilo que eu ia buscar mais longe...
Pode falar um pouco do incêndio que atacou o seu atelier?
Isso é que é mais complicado… Sempre ouvi falar do inferno… Agora posso garantir que eu passei verdadeiramente pelo inferno. Não se deseja a ninguém. Quando se começa a sentir a aproximação do fogo, só com o barulho que ele faz, é um terror! Eu estava aqui, senti o fogo a aproximar-se… Ainda tive o discernimento de começar a regar tudo, a deitar água por onde podia. Depois, aquela sensação de total impotência, de não poder fazer mais nada e ter que eventualmente abandonar tudo. Se eu algum dia chorei – estive horas a chorar sem conseguir parar – foi quando saí daqui, com tudo rodeado de fogo, a carruagem já a arder. Tudo o que não tinha sido regado, estava a arder. Estava aqui um eucalipto que tinha aí uns 20 metros de altura, era enorme, e as chamas lá no cimo! Quando saí daqui na minha carrinha, as chamas cobriam e batiam no vidro. A distância foi pouca, daqui até ali à aldeia, uns 300 metros, mas o calor foi tanto que derreteu o tubo de água de arrefecimento do motor da carrinha. Senti que tinha estado mesmo no centro do inferno. Quando eu saí daqui pensei que ia perder tudo, uma vida inteira a trabalhar, a poupar, para ter o meu espaço.
Perdeu muita coisa?
Sim. Há coisas que não se conseguem compreender. Eu tinha aqui este quarto e o meu acervo estava aqui ao lado. Lembrei-me de fazer aqui uma casa de banho, então, pus tudo ali dentro da carruagem: quadros, desenhos, malas com tudo isso, para voltar a pôr depois no sítio. Por azar, logo nesse ano foi a catástrofe. Foram milhares de peças de cerâmica, muitos muitos milhares de desenhos, escritos, notas, etc, que eu escrevia, e isso perdi. E acho que ainda hoje não consigo recuperar disso.
Sempre ouvi falar do inferno...
Quais são os seus planos para futuro?
Os planos são muito simples: em relação ao espaço, é poder abri-lo às pessoas. Até incentivo artistas a virem cá, tenho aí muitas coisas que não utilizo, e por não utilizar estão a degradar-se com mais velocidade. Em relação a mim, é continuar a simplificar, simplificar a vida. Não quero morrer com uma carga muito pesada às costas, o mais liberto possível. E com 60 anos, não estou propriamente a ficar mais jovem!
Como é que isso se faz?
Esse processo é natural, porque eu sempre tive consciência de que tudo o que nasce morre. Efetivamente, tenho medo da morte. Mas também sinto que a consigo encarar, que a posso encarar com tranquilidade. Porque eu sempre acreditei que era um processo natural, faz parte da própria vida. Tudo morre, as árvores, os animais, eu tive imensos animais que morreram, cães e gatos, pessoas da família, acompanhei muitos deles nos últimos segundos de vida, e sei que também vou ter de passar por esse processo. E não quero passar por isso com uma carga muito grande. Venho, então, fazendo um processo de simplificação nos últimos anos. Isto até parece uma contradição, porque estão a nascer cada vez mais coisas no atelier. Mas essas coisas que estão a nascer no atelier é porque eu sinto que também tenho que ter alguma qualidade de vida. E porque o meu trabalho o exige. Pela minha própria maneira de ser, eu tenho de ter um espaço onde eu possa, várias vezes ao dia, simplesmente passear as vistas e relaxar. Eu necessito disso. Nem toda a gente com certeza precisa, mas eu preciso. Tenho de ter um espaço onde me tranquilize um pouco e volte para o atelier com uma carga positiva, para continuar a trabalhar. Então, desenvolvo esta coisas, a que eu chamo os meus cantinhos. Mas isto também tem a ver com a minha consciência do que nós somos, de que vou chegar provavelmente a uma altura em que não vou poder caminhar com tanta facilidade; vai chegar uma altura em que eu provavelmente não vou poder ir a Lisboa, ou visitar outros sítios. Haverá uma altura em que eu não vou conseguir sair. Eu quero continuar a usufruir disto a que penso que tenho direito, teres os teus cantinhos onde podes estar, até contigo próprio.
É continuar a simplificar, simplificar a vida...
Esse processo de simplificação, no trabalho, passa por onde?
Pelos matarrachos, sempre pelos matarrachos. É assim, eu comecei pelo que era simples, e de repente comecei a complicar. A comprar um forno elétrico, a comprar um forno a gás… A partir de uma certa altura, deixei de viver o forno, de comunicar com o forno, de comungar com o forno. Carrego nuns botões e não vejo mais nada, o processo foi-se. Acho que sou mais feliz se simplificar as coisas. E então os matarrachos são o meio que eu tenho mais fácil de fazer tudo isso. Estou a ir para os processos mais primitivos: cozer novamente na soenga – há imensos anos que eu não fazia soenga e agora já estou outra vez a começar a fazer. Estou também a fazer um forno em tijolo velho, algo que faz mais sentido. Depois há o raku, que nunca vou deixar de fazer. Quando se faz o raku, entra-se num processo de fazer um ritual. O raku envolve sempre as pessoas. Com o raku as pessoas aparecem, come-se uma chouriça, bebem-se uns copos… e esse processo é muito bonito, acaba por juntar as pessoas. E o raku é isso, é espiritual. É o processo em si: colocar as peças no forno, retirá-las, envolvê-las na serradura. Depois, mergulhar em água e aquilo levanta aquele vapor, que parece algo assim místico, uma coisa linda!
Onde é que aprendeu?
O raku… comecei a fazer essas primeiras experiências no forno, e mais tarde tirei um curso de raku. E, desde que apareceu a internet, vou sempre vendo como as pessoas fazem. Mas eu sigo sempre o mesmo processo, vou fazendo a minha química, para que o raku se identifique comigo, para que, não só pela expressão das peças mas também pela química utilizada, as pessoas identifiquem o meu trabalho.
Pode explicar o que é o raku?
O raku é uma técnica de origem oriental, foi introduzida no ocidente por Bernard Leach nos anos 1950, 1952, salvo erro. Quando tu tens uma técnica nova que te proporciona um cromado muito bonito nas peças e que, ainda por cima, envolve as pessoas e cria essa comunhão, as pessoas começam naturalmente a apaixonar-se pelo raku. Hoje em dia, toda a gente quer fazer raku. Mesmo aquelas pessoas que não sabem o que é o raku, querem fazer raku! [risos] O processo é muito bonito porquê? As peças levam a chacotagem, depois levam esse tal banho de vidro, as pessoas podem fazer a vidragem. Depois, é o processo de colocar as peças no forno, já a 600, 700 graus. Quando se dá a fusão dos vidros, a tampa do forno sobe e as peças parecem incandescentes, lindas! E, depois, são retiradas com as tenazes e envolvidas em serradura e, depois, aquelas nuvens de fumo. Depois, são mergulhadas em água, e todos os buraquinhos da peça explodem com vapor por todo o lado! Acaba por ser espetacular e as pessoas gostam de ver. Pelo facto de poderem também socializar, as pessoas começaram a associar o raku a algo espiritual, mas também humano. Quase todas as vezes que faço raku, convido pessoas. Noutras alturas fiz as festas do solstício, punha na net e aparecia aí muita gente! Era algo que tinha muita força, porque era aquela entrada no verão, com aquela energia toda. As pessoas dançavam cheias de energia, havia um grande dinamismo, as pessoas dançavam e ficavam extrovertidas. E isso era importante.
Quando se faz o raku, entra-se num processo de fazer um ritual...
Como encara o seu trabalho nas diferentes categorias? Considera arte, arte popular, artesanato…?
Epá… É difícil definir fronteiras, é verdade. Nem sei se há alguém que consiga definir isso, de uma forma coerente e justa. Eu penso que não existe assim uma grande fronteira. Apesar de que, talvez, o que é popular tenha mais a ver com a tradição, com os costumes; se é arte vamos talvez para algo que é mais racional… mas é-me custoso definir. Como se calhar estou a fazer com que algumas atividades sejam menos consideradas em relação a outras, posso não ser justo. Não sou capaz de definir.
Como vê o seu trabalho em relação a isso?
Não me interessa, é arte, todos são artistas. Por exemplo, o Grão Vasco, hoje consideramos o quê? Ele era um artesão, ele era o mestre e tinha os discípulos. Depois, de repente, começou a separar-se as águas: uns são artistas, outros são artesãos. Pela conceção das coisas atuais, uns pegam no meu trabalho e levam-no para a feira, outros para a galeria. Cada um vê o meu trabalho de acordo com a sua mentalidade. Eu não faço essa separação. Já alguns se chatearam comigo porque não queriam que eu estivesse nas feiras. A vantagem da galeria é que alguém toma conta e faz a promoção do nosso trabalho. Mas também é verdade que, se não vais às feiras, uma maioria de pessoas nunca vai ver o teu trabalho, porque só uma elite é que vai às galerias. Então, acho que tem de haver aí um certo bom senso. Porque é uma questão de divulgação, não é de estares num sítio mais nobre, ou menos nobre. É uma questão de que a tua mensagem chegue a todos, e para isso tens que ir à feira, tens que estar na galeria.
Como vê a situação do artesanato hoje em dia?
Vejo a situação a melhorar. Houve aí um tempo de crise, agora acho que há uma melhoria. Havia uma certa saturação, agora há pessoas que estão a querer também levar a cultura popular para casa e acho que esse contexto faz com que as coisas estejam a mudar para o lado do artesanato. Eu gosto de todo o tipo de arte. Eu não vejo trabalhos, vejo pessoas que fizeram os trabalhos. É como ter a imagem do que a pessoa é. O que a pessoa produz é quase um bilhete de identidade. Ter uma pintura, ter um objeto, é ter junto de nós essa pessoa. É essencial para mim acordar com aquelas pessoas todas. São elas que me dão força, é como se fossem elas que estão ali. Eu sinto que não é tanto a obra que está ali, mas é o autor que está ali um pouco. É por isso que gosto de ter obras de arte. Acho que ninguém pode viver sem obras de arte. Não sei… faz-me até confusão que alguém consiga viver sem ter obras de arte em casa. Juro! Faz-me confusão mesmo! As pessoas vão sentir-se mais sozinhas sem obras de arte em casa.
Vamos agora passar para o jardim para apanhar o sol?
Sim! Juro que já nem me lembrava que estava na entrevista! [risos]