Júlio Alonso está prestes a completar 95 anos. Talvez esta longevidade se deva à combinação, não tão rara entre os oleiros, do universo criativo com o trabalho braçal: o Senhor Júlio ainda se senta à roda de vez em quando, atividade que conjuga com o cultivo diário da sua pequena horta. Como tantos outros da sua geração, transitou, já depois de se ter reformado, da produção de peças utilitárias para a criação de figuras, aproximando-se de um universo mais imaginativo. A sua obra, porém, distingue-se da de outros oleiros da região pela confeção das peças em barro negro, que nas últimas décadas praticamente desapareceu da zona de Barcelos. Atualmente, um dos seus netos – Daniel Alonso –começou igualmente a trabalhar o barro negro, dando continuidade a uma tradição familiar de cinco gerações e lembrando-nos do justo sentido da palavra tradição: transmitir ao longo dos tempos, entregar nas mãos do outro, render.
Conversámos com o Senhor Júlio Alonso e com o seu neto Daniel Alonso em Junho de 2022.
Boa tarde, Senhor Júlio! Não sei se o seu neto lhe explicou que vimos fazer uma entrevista para uma página web sobre arte popular portuguesa.
Aceito! Eu já fiz muitas entrevistas.
Que bom! E já teve uma exposição grande no Museu de Olaria, certo?
Sim. Fiz muitas, muitas. Eu sou oleiro, trabalho à roda. A minha roda até está no turismo, era uma roda antiga que era ao pontapé.
E depois mudou para uma roda elétrica?
Sim, o médico disse que ficava muito torto.
Quando mudou?
Já foi há uns anos. Em oitenta e tal ou noventa…
Como aprendeu a arte da olaria?
Com o meu pai e com o meu avô. O meu avô era espanhol, de Baiona, daí o nome Alonso. Nós fomos lá ver o cemitério onde a família dele está sepultada. Mas eu não o cheguei a conhecer, foi ele que ensinou ao meu pai e depois o meu pai ensinou-me a mim. Foi com 10 anos que comecei a aprender.
Lembra-se da primeira peça que aprendeu a fazer?
Esta foi feito pelo meu pai, foi isto que eu comecei a aprender a fazer [imagem abaixo]. E sabe para que era isto?
Para a água? Para o vinho? [risos]
Para fazer sopa na brasa, no chão.
Eu achava que essas panelas costumavam ser de ferro!
Quando eu nasci o ferro era muito caro! Não tínhamos posses para comprar isso. Então reproduzíamos no barro. Depois veio o alumínio e o plástico e isto deixou de ter venda. O cântaro deixou de ter venda.
Pelo que li do seu percurso, trabalhou em várias olarias.
Eu estive com o meu pai até ir para a tropa, em 1949. Quando vim da tropa, casei e vim para aqui. Eu pertencia ao concelho de Vila Verde. Lá a louça começou a deixar de se vender, aqui em Barcelos isto nunca mais acaba! Eu fazia as festas e romarias do país todo! Nos anos 1956, 57, por aí.. Começava na Festa das Cruzes em Barcelos, depois ia para Matosinhos, depois para o São João das Fontainhas no Porto, Guimarães, Agonia em Viana e Feira da Luz em Lisboa. Santarém, Vila Franca, Tomar… começaram a vir os filhos e eu arrumei. Aquilo era muito duro, não era aquilo que eu queria. Então aí arranjei emprego numa fábrica, a Magrou, era encarregado do barro e estive muitos anos lá. Depois estive na Infante e na Tulipa, que foi fundada por mim e por outro sócio. Eu vendi a minha parte em 1985.
Qual era a sua feira preferida?
As Fontaínhas no Porto. Vendia-se melhor! [risos]. Em Carnide, Lisboa, também se vendia, mas era cansativo.
Temos ouvido várias histórias de que roubavam muito nessas feiras. É verdade?
Sim! Em Carnide, todos os sábados e domingos ia à esquadra requisitar um polícia, para estar ali à entrada da barraca. E nas Fontaínhas também roubavam muito!
Roubavam dinheiro ou as peças?
As peças! Para vender depois.
Que tipo de louça é que fazia?
Cântaros, púcaros, panelas… para utilizar. Era louça utilitária. Só trabalhava na roda, isto do artesanato foi só quando eu tinha 75 anos, já estava reformado.
Altura em que começou a fazer as figuras. Porque começou?
Porque aquilo que se vendia antigamente deixou de se vender. Os potes, as panelas para cozer ao lume, tachos, etc. … Depois comecei a fazer santos, presépios, tudo coisas religiosas. Depois estendi-me bastante. Tudo o que me vinha à ideia eu fazia. Pegava num pedaço de barro e fazia a peça. Modelava e fazia a peça do princípio ao fim. Traziam-me estampas para fazer os santos, e eu fazia. Alguns diziam “quero o Santiago de Compostela”. E eu fazia.
Daniel Alonso: É como ele diz às vezes, naquele tempo não fazia ideia de que os bonecos se vendiam!
Foi aí que começou a assinar as suas peças?
Não sei bem… Foi depois de ter vindo para cá. Eu vendia muito para Trás-os-Montes, que também tinha louça preta. E eles aí não queriam muito a minha assinatura, queriam que fosse vendida como se fosse deles! A princípio não assinava, depois ninguém as queria se não fossem assinadas. Devia ter aí uns 70 anos quando comecei a assinar. Lembro-me que vendi umas peças para um artesão e ele quis pintá-las ele. Vendi antes de as cozer. E houve uma advogada que se virou para ele e disse-lhe assim: “eu compro-lhe esta peça, mas tem que a levar ao Senhor Alonso para ele assinar, que esta peça é dele!” Veio aqui e eu assinei. As pessoas agora não querem a peça se não for assinada.
Já há muito tempo que é conhecido por ser o artesão do barro preto em Barcelos. Porque é que começou a fazer as suas peças em barro preto, numa zona em que este é pouco comum?
Foi logo desde o princípio! Eu estava casado há meia dúzia de anos e houve um amigo meu que me disse: se você sabe trabalhar em barro preto, porque é que não faz um forninho e cose em preto? E pronto, eu fiz um forno e foi assim. Aquilo é cozido com lenha, depois a rama do pinheiro seca é que dá o fumo. E dali para cá comecei a fazer umas coisas.
Daniel Alonso: A louça preta já estava na família há várias gerações. O avô dele já fazia louça preta, a nossa família sempre fez. Esse mito de que a louça preta é só em Vila Real é mesmo só mito. Das conversas que fui tendo e do que fui lendo, existiam vários polos de louça negra espalhados por Portugal e pela Europa toda. Ainda há pouco encontrei umas pessoas da Dinamarca que também trabalham com louça preta. A questão é que em alguns sítios ela desapareceu completamente.
Tem aqui umas belas peças. Esta é muito curiosa! É uma morcela em madeira?
É barro! Fui eu que fiz e pintei.
Em barro?! Nunca tinha visto nada parecido! Como se lembrou de fazer isto?
Ideias que me vêm à cabeça. E há gente que usa para fazer brincadeiras, põem na mesa e dizem “agora corta tu!” [risos].
Olhe aqui a louça antiga, os púcaros. Tem aqui peças do meu pai. E esta é do meu avô! Está lá numa vitrine de vidro para ninguém lhe tocar. O presidente da Câmara disse para eu ir lá e perguntou “reconhece esta peça?” E eu olhei para a peça e disse: “é do meu avô Joaquim”. E eu depois copiei-a, vendi muitas, e dei uma a cada um dos meus filhos.
Tem acompanhado o trabalho dos oleiros mais novos?
Sim. Há aí gente nova com muito boas ideias. Este meu neto ali… [risos]. Já começam mais tarde, já pensam mais… Eu admiro esses novos que estão a trabalhar, que fazem as coisinhas bem feitas. A Ramalho fazia as peças muito mal feitinhas…! E agora estes fazem melhor. Eu fiz o melhor que pude.
O seu neto Daniel, aprendeu consigo?
Também. Veio para aqui olhar, ver como era, brincar ali na roda. Depois foi levar a vida dele, foi ao Canadá, à Suíça, esteve num café… já tem uma história grande, ele. E agora é a olaria.
A tempo inteiro?
Daniel Alonso: Sim. Estou agora a seguir o formato em que o meu avô trabalhou. O meu pai também trabalha em cerâmica. Ele tinha uma fábrica de louça decorativa que já não existe, faziam jarras, peças decorativas de jardim, aqueles cogumelos e sapos que se usou nos anos 1990…. Ele fazia exportação para a Alemanha, Suíça, etc.. Eu estava lá com o meu pai ou aqui com o meu avô, muitas vezes o barro era o meu brinquedo, a minha plasticina. Mas eu não conseguia fazer a minha vida estando no artesanato, o artesanato não é só querer, nem só poder. Temos que construir a nossa estrutura e o nosso nome lentamente. Mesmo tendo antepassados, é preciso começar uma coisa nova. O nome até acresce mais responsabilidade! Também tens que te divertir no que estás a fazer, não vais fazer só por fazer.
Quando começaste no barro a tempo inteiro?
Daniel Alonso: Só no ano passado. Estive quinze anos na restauração em Portugal e com a pandemia não se justificava, havia muita incerteza. Então decidi terminar com esse negócio. O meu avô também já me tinha perguntado várias vezes se eu não queria continuar, dizia que tinha jeito. Nós vemos nos livros alguém a dar continuidade à tradição da família e nós temos isso dentro de casa! O avô do meu avô já fazia… então achei que devia dar uma oportunidade. E no ano passado, em agosto, muito lentamente, fiz os meus primeiros modelos e a minha primeira feira em Barcelos. Nem sabia bem como era o mercado… Mas percebi que o figurado vende melhor que as peças decorativas. Depois convidaram-me para outras feiras, e ainda nem tive tempo de me organizar como deve ser!
Como lidas com a herança do teu avô? Tentas dar alguma continuidade?
Daniel Alonso: Sim. Nunca me vou desprender disso. Em primeiro lugar, porque não quero. E em segundo, porque sempre achei bonito o facto de ser diferente. Nas feiras de artesanato em que estávamos presentes, eu dava a volta àquilo e nunca via nada igual. É negro, há pessoas que não gostam, é normal. Há pessoas que dizem “não sei como as pessoas gostam disto”. Magoa um bocadinho, mas a gente tem que entender que há várias opiniões.
Entrevista de Maria Manuela Restivo, fotografias de Ângela Azevedo.