Júlia Ramalho é, seguramente, uma das artistas populares mais conhecidas dos portugueses, sendo a sua obra facilmente identificada pelo uso do barro vidrado em tons de mel. Nascida em 1946 na freguesia de Galegos, Barcelos, Júlia é neta da conhecida ceramista Rosa Ramalho, tendo com ela aprendido, ainda antes dos 10 anos, a fazer figuras em barro. No seu trabalho é visível a continuação do trabalho da avó – nomeadamente nos cristos, sarrôncos ou cabeçudos – ao qual se juntaram algumas peças de sua própria criação.
Júlia Ramalho é uma contadora de histórias nata, sendo notório o prazer com que partilha as suas memórias do passado. Faladora e extrovertida, não se coíbe de opinar sobre diversos assuntos, desde a certificação do figurado à forma como encara os seus pares. Nesta entrevista, realizada no Porto em Dezembro de 2016 e na sua oficina em Abril de 2017, falámos do seu trabalho e do seu quotidiano, mas também da história do figurado de Barcelos, à qual a sua família se encontra profundamente ligada.
Recorda-se das primeiras vezes que mexeu no barro?
Eu mexi no barro desde pequenina, porque eu já brincava com o barro. Mas mexer no barro para fazer uma coisa de jeito foi com 10 anos.
Como se lembra tão bem desse momento em que produziu a primeira peça?
Lembro-me porque o António Quadros, com um grupo de amigos das Belas Artes do Porto, foi lá a casa. Eu estava com a minha avó, estava sentadinha num esteio e peguei num bocadinho de barro e fiz um cãozinho, ou um burrinho, nem sei bem o que era. E aquilo ficou direito, estava completo. O António Quadros disse: “Olha que bonito!”. Eles viram-me a fazer porque eu estava sentada ao pé deles. Ele disse assim: “Quanto queres por ele?”. E eu disse: “5 coroas”. E ele deu-me 5 escudos.
Começou a trabalhar por causa da sua avó Rosa Ramalho. Pode falar-nos um pouco da sua avó e de como ela ficou conhecida?
O António Quadros quando descobriu a minha avó pegou num sardão, num lagarto, pelo rabo e disse: "Quem fez isto?". E ela disse: "Fui eu, olha essa, quem havia de ser?". "Como é que a senhora fez?". "Com as mãos, como é que havia de ser?". "E se eu lhe pedir a senhora faz outras coisas?". "Faço tudo o que o senhor quiser, é só dizer!". Mas não fazia nada. Estava assim um bocadinho a leste do que estava a acontecer com ela. Mas pronto. Então o António Quadros começou a passar a mensagem aos amigos: “Epá, nós temos aí uma velhota que faz um figurado muito bonito”. E eles por gosto – penso que não foi com a intenção de ganhar dinheiro, ele gostava mesmo dos bonecos toscos da minha avó – começaram a comprar.
Porque razão começou a acompanhar a sua avó?
Comecei a acompanhar a minha avó para a ajudar. Não sei se era eu que a ajudava ou ela que ajudava a mim. Ela comigo ao colo não andava porque eu já era grandita e ela era pequenina. Depois eu fui crescendo, as coisas foram acontecendo… A minha avó vendia para duas ou três lojas aqui do Porto. Vendia-se pouco, também se fazia pouco – o figurado feito à mão dá muito trabalho. Às vezes era eu que a ajudava. Ela fazia estas feiras, o São João das Fontainhas, ... Então um dia ela tinha que ir para a feira e ninguém a ajudava. Ela tinha mais filhos, mas ninguém a ajudava. O meu pai pôs os filhos dele a ajudá-la a carregar o camião para ir para as Fontainhas no dia seguinte. Então eu estive a pintar os bicos das andorinhas porque a minha avó precisava delas. Mas… olhe, passámos as passas do Algarve.
Nas feiras?
Sim, nas feiras.
Eram só vocês as duas?
Ao fim de semana vinha o meu tio e um cunhado meu ajudar. Mas durante a semana estávamos nós sozinhas. E roubavam, aqui no Porto roubavam muito.
Roubavam?! As peças ou dinheiro?
As peças. Nunca ninguém roubava dinheiro, só peças. Para ter peças em casa sem ter que as pagar. E sabe o que é que faziam? Roubavam nas Fontainhas e quando a gente fosse embora faziam eles a feira aqui na Corujeira.
De onde vem a inspiração para a criação das suas peças?
É imaginação. Não é nada de especial, é mesmo imaginação.
Não consulta livros nem revistas para fazer as suas peças, por exemplo?
Livros? Eu não tinha livros. Eu tinha dez anos e em vez de estar a ler estava… olhe, a semear batatas, às vezes. Mas os amigos da minha avó levaram-me livros e uma vez uma francesa veio e deu-me um livro que ainda tenho: A Fada Oriana, uns contos para crianças.
E quais são as suas peças preferidas, entre as que faz?
São várias. Mas a Medusa, que fui eu que a criei, gosto de fazê-la. As minhas peças são como filhos, levo-as atravessadas na minha garganta. A gente desfazer-se de uma peça que gosta muito é como perder um filho.
Lembra-se de alguma peça que não tenha resultado tão bem?
Eu estava doente e fiz um médico sem bata, só tinha uma gola. Mas foi feito por engano! Quando dei conta já estava cozida e o doutor não tinha bata, só tinha uma golinha… [risos]. Mas o senhor pegou na peça, gostou dela e comprou-a.
Porque razão acha que as pessoas gostam das suas peças?
Algumas compram para oferecer, outras compram porque gostam. Eu já tive duas pessoas a dizerem-me: “As suas peças são tão bonitas que me apetece comê-las, parecem caramelo”.
Porque começou a vidrar as peças em vez de as pintar, como fazem a maioria dos bonecreiros?
Eu vou-lhe dizer como começou o vidrado… As peças começaram a ser vidradas porque um senhor de Guimarães, já de certa idade, trouxe um bonequinho para a minha avó ver (que era um macaquinho), para ver se ela se lembrava quem fez aquilo. E ela pegou na peça e disse assim: “Ahh… foi feito pelo pai do Tarã". O Tarã era um velhote meio trengo, mas fazia um figurado muito bonito. Fazia galinhas com mamas, pitos com cornos… E a macaca já vinha vidrada. E ele disse: “Eu queria que você me fizesse umas peças mas queria vidrado, porque o primitivo da cerâmica foi vidrado”. E tanto foi que, quando fizeram obras em casa dos Baraças, desentulharam de lá uma coisa qualquer onde apareceram assobios vidrados, pitinhos vidrados. Eu até tenho guardado em casa um dessa época.
E o que é o que a sua avó fez?
A minha avó não sabia vidrar e foi a uma fábrica de alguidares pedir ao João que lá trabalhava: “Ó João, vidras-me aqui umas peças, que chegou lá um homem de Guimarães que quer as peças vidradas?”. E o João Manquinho começou-lhe a vidrar peças. E um dia alguém lá em casa (não sei se foi o meu pai, se quem foi) disse: “O nosso forno é capaz de vidrar”. Então vamos experimentar. E eu disse: “Ó avó, vamos experimentar, se ficar estragado é só uma fornada” (o forno era pequenino). Experimentámos e deu! Só que tinha que se fazer uma ginástica grande: enfornava-se até ao meio e tapava-se com cacos. Punha-se a louça que ia vidrar por baixo e louça crua por cima para agasalhar o calor, assim o calor concentrava-se ali.
Nessa altura ainda era forno a lenha.
Era.
Quando começou a usar forno elétrico?
Comprei-o em 1980, mas não comecei a usar logo. Eu não usava o fogão elétrico – não ganhava para a luz – e depois começou a ser a gás.
É o que tem agora?
Sim.
Voltando ao vidrado… Vocês começaram a produzir o próprio vidrado e depois faziam-no a todas as peças?
Sim, mas havia muitas que eram pintadas e eu vou-lhe dizer porquê. Havia uma peça, ia ao forno, partia um braço. A gente cola um braço mas já não dá para vidrar, porque o braço cai. Em cada fornada tirávamos umas quantas peças para pintar. E punha-se gesso… Vigarices [risos].
Depois da sua avó falecer, a Júlia continuou a vidrar as peças. Acha que são mais bonitas vidradas?
Acho. São diferentes.
Ao nível da sua rotina de trabalho, trabalha de segunda a sexta?
Às vezes não trabalho… Vou-lhe dizer, quando eu estou mal disposta para trabalhar, não trabalho porque não sai nada de jeito. Sai doutores sem bata, sai homens sem casaco… É mais ou menos como me apetece. Já trabalhei muito e não estou rica, não vale a pena estar a esforçar-me! Chegou a ser desde as 11 da noite às 5 da manhã, depois é que ia dormir um bocadinho.
Começou com a sua avó a vender em romarias e feiras locais, agora vende a partir de casa ou em feiras de artesanato. Quais são as principais diferenças?
Eu costumo chamar uma coisa: as feiras dos pobres e as feiras dos ricos. Na dos pobres fazíamos uma cama na barraca com a palha com que trazíamos as peças, na dos ricos a gente vai para uma pensão: tem onde dormir, tem casa de banho.
Quando começou, nos anos 60, já havia feiras de artesanato como agora?
Houve sempre a feira de artesanato em Barcelos. Os primeiros a fazerem barraquinhas deste género, como se vê nas feiras de artesanato, foi a Câmara de Barcelos. E depois emprestaram à Câmara de Cascais, que emprestou à Câmara de Lisboa para fazer a feira de Belém.
E as primeiras feiras que fez com a sua avó? Deviam ser bem mais complicadas…
Eu é que fazia a barraca, com um martelo e pregos grandes.
Fazia!? Mas era de pano?
Sim. O meu avô morreu e depois quem começou a fazer a barraca era eu e ela. E depois havia sempre um vizinho, um homem, que nos botava o pano acima. Depois do pano estar esticadinho em cima, o resto das coisas fazíamos nós.
Como faziam para dormir?
Dormíamos lá na barraca.
Como era o calendário de feiras anual?
A gente começava na feira do Senhor de Matosinhos, em princípios de junho, engatava na Feira de São João das Fontainhas e só íamos embora quando passasse o dia de São Pedro.
Então passavam o Inverno a trabalhar e vendiam as peças no Verão?
Sim, e está bem assim.
Ao longo destes últimos anos houve muita gente a começar a fazer figurado.
A seguir à minha avó foi o Mistério. Mas esse precisava mesmo. Nessa época começaram também os Baraças, faziam figurado e vendiam na feira de Barcelos.
Depois começaram outros e agora há imensa gente!
Nós temos lá um gabinete da cultura que aceita tudo… Ainda por cima tiveram o descaramento de me dizer a mim que nós é que tínhamos que ajudar os que estavam a começar.
Mas gosta do trabalho que os novos ceramistas andam a fazer?
Alguns fazem as coisas muito perfeitinhas, muito bem feitinhas, mas fugiram do artesanato, do figurado de Barcelos. Já não é o figurado que era…
Então não gosta de ninguém em especial?
A gente gosta da [Júlia] Côta, que é tola! Pinta tudo mal pintado, borrata tudo. E é uma malcriada… [risos] Mas faz umas peças lindas. A gente à beirinha vê que está tudo borratado, mas assim de longe, está lindo.
O que acha da certificação que foi criada há uns anos?
Acho péssimo! Então vão certificar uma coisa que não tem valor nenhum?!
Acha que não tem utilidade?
Não. Eu aceitei porque senão era considerada a rebelde, por isso é que aceitei. Mas eu não tenho nada aí pendurado [a referir-se às etiquetas da certificação que se associam às peças]. Não posso pendurar o fio porque esta mão não tem força… [risos]. Então se eu trabalho há 60 anos e isso serviu, agora tenho que ser certificada?!
Mas acha que o processo está mal feito?
Não sei se está bem feito porque eu não andei a ver o que eles escreveram. Por exemplo, eu conheço uma senhora que faz uns presépios e umas coisinhas de Natal muito bonitas – até vai à praia e arranja coisinhas do mar. Não foi aceite como artesã. Mas há um rapaz em Barcelos que foi aceite como artesão e não faz nada que preste.
A antiga casa onde viveu a sua avó agora está em ruínas. Pertence a quem?
Eu nunca tive dinheiro para segurar aquilo. Era preciso muito dinheiro. Mas uma vez eu tive coragem para numa sala cheia – tinha mais de cem pessoas naquela sala – pedir à ministra da Cultura ajuda. Ela entrou e eu disse: “Ó Sra. Ministra, ajude-me. Ajude-me que a casa da minha avó está a cair!” [risos] Ela ficou calada e disse: “É a primeira vez que alguém me faz um pedido destes em público.”
Mas a casa pertence à vossa família ou à Câmara?
Pertenceu à nossa família mas agora é da Câmara. Comprou-a há meia dúzia de anos. Aquilo era de uma minha irmã. Ela morreu e os filhos venderam tudo.
Há algum projeto feito para lá?
Dizem que já há um projeto feito, mas nós nunca vimos nada. Parece que vai ser uma parte do museu que já existe.
A Júlia o que gostaria de fazer com as peças da família Ramalho que tem guardadas?
Se eu tivesse dinheiro neste momento para fazer um grande barracão, metia-as lá. E só deixava entrar quem eu quisesse.