Extrovertida, alegre, calorosa, despretensiosa – é impossível não simpatizar imediatamente com Júlia Côta. Visitar a sua casa-ateliê é ser recebido por um número variável de filhos, netos, bisnetos, cães e gatos, e ter a agradável sensação do conforto familiar. Talvez porque Júlia Côta seja mestre na arte de receber com o coração, dispensando assim qualquer formalidade. Atualmente com 83 anos, é das mais antigas barristas de Barcelos a produzir figurado, algo que ainda faz diariamente, no mesmo espaço onde começou há várias décadas.
Nesta entrevista de Outubro de 2019, falámos sobre o seu longo percurso na arte de fazer bonecos de barro, e ouvimos algumas das histórias que a tornaram numa das mais acarinhadas artistas de Barcelos.
Como começou a trabalhar no barro?
Olhe, filha, é muito simples e é bom de explicar, já estou muito habituada: trabalho nisto desde os nove anos. Claro que aos nove anos era estragar barro, com certeza que a minha mãe nunca aproveitava o que eu fazia! Mas desde a idade de nove anos nunca mais trabalhei noutra coisa. Depois fui crescendo… eu era quase das últimas, a minha mãe tinha 8 filhos. Fui eu a única que aprendi o modo de vida da minha mãe, nunca mais ninguém teve vocação para isto. E, olhe, sinto-me muito feliz! Depois de me casar, em vez de trabalhar por minha conta, continuei a trabalhar para os meus pais, a ganhar a 15 tostões à hora, imagine! Mas um dia chego lá para trabalhar e o meu pai quis aumentar-me para 3 escudos! Quando eu ganhei os primeiros 100 escudos – digo-lhe isto do fundo do coração! – já era casada. Já deu para ir buscar a mercearia toda, já deu para ter o comer para toda a semana. O meu falecido homem também ganhava muito pouquinho, que ainda era novo. E, olhe, sinto-me muito contente com esta vida, sou neta de quem fez o primeiro galo que existiu em Barcelos. Depois o meu pai e a minha mãe faziam galos de metro e meio cada um! Olhe, já passámos muito. Hoje sinto-me muito contente. Dantes, queria 5 tostões para comprar um pão e nem isso tinha. A gente, se tivesse 5 escudos, era a guardar, não gastava, que era para ter para outro dia! Por isso é que eu ganhei muita vontade de trabalhar nisto, muita! E continuo, se Deus quiser, até morrer, que agora também não serão uns dias tantos. A maior tristeza que tenho é de ser tão velha, gostava de ser mais nova!
Olhe, filha, é muito simples e é bom de explicar...
Lembra-se do seu avô fazer o primeiro galo de Barcelos?
Não me lembro… Lembro-me da minha falecida mãe dizer assim, a mim e às minhas irmãs: “Vai à casa do vozinho – ele morava no Alto de Santo Amaro, à beira dos Baraças – ide lá ao vozinho, que empreste dinheiro para ir buscar a fornada”. O que era a fornada? Era farinha para cozer o pão. E eu lá ia. E ele dizia: “Quando é que a mãe vai trazer o dinheiro?” E eu dizia: “Logo que a minha mãe venda louça, vem aqui trazer o dinheiro.” E eu via o meu avô a trabalhar na roda, velhinho já, coitadinho, a fazer o cabaço do galo, o corpo principal. Depois fazia o pé, o pescoço feito à roda, e a minha falecida mãe fazia a crista. Eu ainda hoje faço galos, antigos como os meus pais faziam. Se alguém disser que faz galos como aqueles, mente. Sou eu a única a fazer galos como aqueles em Galegos Santa Maria. Não falta quem faça galos, até os chineses fazem galos! Mas como os meus não há ninguém que faça, a não ser eu. Vê os galos aqui? São lindos, não são? Tinha galos e galinhas mas já vendi tudo.
Então, na altura, na sua família toda a gente trabalhava no barro?
Tudo, quase tudo. Dantes, por aqui acima, era quase tudo a trabalhar no barro.
Mas era mais olaria, certo?
Sim. A olaria é trabalhar à roda, o artesanato é trabalhar à mão. É diferente.
Não falta quem faça galos...
Fale-me um bocadinho da sua mãe [Rosa Côta].
A minha mãe… sentava-se numa lareira das antigas, onde punha a trempe, e as panelas em cima, por dentro branquinhas e por fora todas pretas – claro, estavam no lume! Ela cozinhava para casamentos, ao fim-de-semana ela lá ia. Era o braço direito da nossa casa. Sentava-se na ponta da lareira para ter as mãos quentinhas, para poder trabalhar! Dantes caía muita neve! Não havia estradas nem nada. Eu para ir a Barcelos vender a louça era hora e meia de caminho a pé, com o cesto cheio de louça à cabeça, imagine. E depois a minha mãe ia ter comigo da parte da tarde para comprar 5 escudos de sardinhas – que dantes não se comia mais nada – meio quarto de sal, que se trazia no cesto outra vez, e as coisinhas da casa, pronto. Se ela tivesse dinheiro, comprava, se não tivesse, não comprava. Era consoante o que a gente apurava. Levávamos uma vida… eu já comi bem o pão que o diabo amassou. Isto já esteve um bocadinho empatado. Mas agora vende-se bem. Eu gosto muito do que faço. A minha segunda filha [Prazeres Côta] também já trabalha nisto. Pediram-me muito: “Ó Júlia, não deixe acabar a sua louça, ponha uma filha sua a aprender.” E ela saiu da fábrica e veio para aqui para a minha beira. Eu às vezes até lhe digo: “Não vás sempre atrás de mim, modifica umas peças!” E ela modificou, começou a fazer as peças dela. E ela diz: “Ó mãe, eu só queria que me rendesse a mim como rende a você!"
Dantes caía muita neve...
Que tipo de peças é que a sua mãe fazia?
Era de tudo como eu, mas eu já faço muitas mais que ela nunca fez. Era cabeçudos, músicos, alminhas, juntas de bois… eu também faço, mas ela fazia mais disso. Ela destas bonecas era raro fazer. Começou a fazer desde que eu fui para lá trabalhar com eles.
Mas houve uma altura em que a sua mãe ficou bastante conhecida, certo?
Ela era das melhores de Galegos Santa Maria! Era ela, o Mistério, a Baraça velhinha que morreu… e olhe, essas pessoas esqueceram, fiquei triste. Ao princípio, quando vinham aqui fazer as entrevistas, eu dizia: “Dou, sim senhora, mas quero que a minha mãe vá na frente!” Ela não está cá mas eu faço de conta que ela está, porque eu aprendi com a minha mãe. Vocês vejam quantos euros eles não deram à Joana Vasconcelos para estar ali o galo. Ao meu avô nunca deram nada, nem aos meus pais! Uma vez o Presidente disse-me assim: “Júlia, foi a sua família que deu nome a Barcelos.” E nunca lhes deram nada! Ela andava com o cestinho à cabeça, pela Ribeira… Era uma vida triste. Por isso, não gosto de dizer a ninguém que não. Se passar aqui alguém a pedir uma esmola, eu dou sempre. Digo isto do fundo do meu coração. Porquê? Eu sei aquilo que passei. Tantas vezes eu quis um bocadinho de pão para comer!… Hoje sobra uma saca de pão ou de trigo e vai para as galinhas. Ninguém quer o pão duro. E dantes até comíamos o pão com bolor. Eu não consigo dizer que não dou uma esmola, não consigo. E aquilo que eu dou, Deus abençoa-me: dá-me o dobro. É verdade!
Quando é que as coisas começaram a melhorar?
Já há muito, há mais de quinze anos para cá! Acho que as pessoas estão a dar mais valor a isto porque é feito à mão. Torno atrás: bonitas não são, são mal feitinhas! Mas, olhe, eu vendo. [risos]
A Júlia também acompanhava a sua mãe nas feiras?
Sempre, eu não deixava a minha mãe por nenhum. E no fim deixei-a para toda a vida… Quando estou com o barro, lembro-me sempre da minha mãe. Eu, às vezes, dizia-lhe assim: “Ó mãe, eu não sei como consegue fazer esses pitos tão bem feitinhos!”. E agora a minha filha não me diz o mesmo a mim?! Palavra de honra!
Quando estou com o barro,
lembro-me sempre da minha mãe...
Quando é que começou a assinar as suas peças?
Houve um senhor do Porto que me deu um carimbo, e fazia-me os cartões. Era o senhor Tavares, morava ali perto da Ribeira. Nunca levou dinheiro de mos fazer! Ele disse-me assim: “Júlia, pegue lá o carimbo para você pôr nas suas peças, mas eu quero que você faça também essas duas letras.” [exemplifica] Um dia qualquer fui a Braga, ao Bom Jesus, fazer uma exposição de Cristos. Depois no fim, você não queira saber, era gente toda bem vestida, doutores, e fizeram uma fila grande, para quê? Para eu assinar! [risos] “Júlia, ponha-me aqui a sua assinatura.” Eu não sabia se havia de rir ou de chorar, palavra de honra! Mas gostei muito desse bocadinho, gostei imenso.
Trabalha todos os dias?
Todos os dias. Começa-me a doer a cabeça se não tiver barro. E eu há bocado esqueci-me de dizer: agora a gente já compra o barro preparado, amassadinho. É outra limpeza! Adorei! Quando eu vi que as máquinas amassavam o barro, fiquei toda contente. Dantes, a gente comprava dez carros de barro. Chamava-se uma junta de bois, que era um senhor que já amassava o barro, e vinha-nos amassar. Chamava-se aqui um aloque – era como uma eira de pôr o milho. Era um aloque de barro. Lá se amassava o barro e nós atrás dos bois. Eles faziam uma pegada e nós atrás deles descalcinhos. Às vezes tudo cheio de neve! E nós íamos, tornávamos a tapar, para os bois virem tornar a amassar e ficar o barro bom.
Quem é o seu oleiro?
Não é daqui, é de Roriz. Eu cheguei a fazer à mão, mas dava muito trabalho. Vê como as bonecas nascem da roda? Eu gosto muito de tudo o que faço, mas vou-lhe ser sincera: o que gosto mais de tudo é das minhas bonecas! Gosto de as fazer, gosto de as pintar. Esta e aquela dei às minhas filhas, e esta, que foi a Itália! Ofereceram-lhe cinco mil euros e ela não vendeu!
Adorei, quando eu vi que as máquinas amassavam o barro...
E as cores que usa?
Dantes havia uma coisa que a gente comprava que era a resina. A gente metia a resina numa lata grande, punha-se dois tijolos, umas brasinhas por baixo e a resina derretia. Depois tirava-se da beira do lume quando estivesse derretida, para botar aguarrás. Mexíamos com o pauzinho – era o verniz. Hoje não, hoje compra-se as latas aos quilos – tinta de esmalte. Hoje pode-se lavar as peças com água que a tinta não sai, dantes saía. Modificou tudo, e ainda bem. Mas as cores sou eu que as faço. Junto branco, amarelo, anilina… faço como quero. Todos me dizem isso: “Ó Júlia, você põe umas cores na sua louça tão bonitas!”, eu fico toda contente! “As suas peças dão vida!”
De onde vem a inspiração para a criação das suas peças? Estes monstrinhos, por exemplo.
Estou aqui com o barro, vou fazendo o que me apetece! É da minha cabeça que sai, não vou copiar nada de ninguém. Chamo-lhes “bichos sortidos”. [risos] Olhe que bom migalheiro aqui está! Pintado vai ser mais bonito.
Olhe que bom migalheiro aqui está...
Quantas feiras faz por ano atualmente?
Lisboa, Coimbra, Pombal, e a nossa [Feira de Artesanato de Barcelos] não a dispenso por nenhum. Eu nem precisava de sair de minha casa para vender as minhas peças. Vendo para particulares e para voltarem a vender. Vendo para Lisboa, para o Algarve, para todo o lado. E não vou às feiras todas que me convidam para ir, porque não posso, não tenho louça. Eu gosto de ir mas gosto de levar aquilo que eu gosto. Se não tiver, não vou.
E como é o ano de trabalho?
Eu começo a vender antes do Natal. Até ao Natal vendo bem, depois parou, naqueles dois meses de janeiro e fevereiro. Só em março, abril é que a gente começa a vender. Temos que fazer como as formigas, guardar do riso para a chora, não é? A gente não sabe o que vem.
A crise afetou-a?
Não, nem por isso, graças a Deus. A gente tem sempre a reforminha. Se não era um, era outro.
Temos que guardar do riso para a chora...
Agora há muita gente em Barcelos a fazer figurado. O que acha dos novos artesãos?
Eu acho que fazem muito bem em aprender. Mas que façam aquilo que é seu, pelas suas mãos, não é copiar pelos outros! Porque, olhe, não falta quem me diga que copiam muito as minhas peças. Mas eu não me importo. As minhas são minhas, não acha?
Está contente com o trabalho que a Câmara Municipal faz para promover o figurado?
Olhe, com respeito à Câmara, não tenho queixa nenhuma. Mas prometeram-me que me davam um forno e nunca mais me deram, não vou dizer nomes. Cozi a minha louça sempre no forno a lenha, eram quatro ou cinco horas a cozer lenha, "filha da puxa"! Deixei de cozer, a senhora que me vende o barro é que me coze a louça, a Inês, que é muito conhecida e é amiga de todos. Ela coze-me a louça e eu dou-lhe um tanto. Só é chato levá-la porque é crua e parte no carro, não é?
Espreite aqui. Aqui era a cozinha antiga, onde se cozinhava a broa. Eu no Natal faço pão, eu faço um pão muito bom! Hoje tenho uma boa cozinha, que construí à custa do meu suor. Dou-lhe muito valor. Sempre quis ter uma cozinha boa.
Como é viver uma vida dedicada ao barro?
Sinto-me muito orgulhosa nisto que faço, de cada vez gosto mais. Eu acho que é o barro que me dá genica! Já são muitos anos, tenho um amor a isto quase como aos meus filhos, isto é sagrado. Eu não sou mentirosa nem nunca fui, digo isto do fundo do meu coração. Tenho mesmo amor ao barro porque foi o barro que me deu o ser. Eu não tinha nadinha!… Criei 7 filhos, mandei fazer esta casinha… tudo fiado, que eu não tinha dinheiro para nada! Mas houve quem se fiasse de nós, pagámos tudo e não devemos nada a ninguém. Tenho 13 bisnetos e 23 netos. A maior tristeza que tenho no mundo é não ter o meu marido… Tenho muitas saudades dele e dos meus pais. Já sou viúva há 25 anos, e nunca quis mais nenhum homem na minha vida. Queriam-me a mim se calhar pelo dinheiro que eu ganhava, por formosura não era, que já sou velha! Ele era pintor à pistola, comeu tanta tinta e tanto verniz, não teve solução… E depois puseram aqui a rua no meu nome, veja bem, e eu queria que fizessem publicidade à minha mãe. Imagine! Eu acho que não merecia o nome na rua, mas puseram, e pronto. Adoro, gosto muito das pessoas que me ajudam! Não sou daquelas gulosas que só querem que me dêem, nunca fui assim. E olhe, vai-se fazendo, vai-se vivendo. Todos nós andamos ao mesmo, porque é que a gente não há-de andar com a cabeça levantada? Não há como a gente ser séria: o que é nosso, é nosso, o que não é, não é!
Eu acho que é o barro que me dá genica...