José Vinagre, atualmente com 94 anos, parece pertencer àquela categoria de pessoas que, quando se dispõe a fazer alguma coisa, tem de a fazer bem. Ao longo da sua vida foi pescador, podou árvores, ceifou trigo, tosquiou ovelhas, amansou touros, construiu poços. Atividades que lhe valeram, segundo nos contou, elogios vários, dada a eficácia com que as concretizou. E nós acreditamos, já que parece haver nele uma mistura de determinação e concentração, qualidades particularmente vantajosas para quem se dedica ao trabalho manual. Por volta dos quinze anos, agarrou um pedaço de cortiça que encontrou no chão e começou a esculpir, como se fosse a coisa mais natural do mundo. A partir daí nunca mais parou, ainda que só umas décadas mais tarde, quando se reformou, se tenha dedicado plenamente à escultura. Começou a frequentar algumas feiras de artesanato onde foi divulgando o seu trabalho para um público cada vez mais fiel e mais vasto. Atualmente continua a produzir algumas obras, e ainda que a precisão possa não ser a mesma de antigamente, o entusiasmo não esmoreceu com a idade.
Entrevista realizada em Janeiro de 2024 a José Vinagre e ao seu filho, Pedro Vinagre, por Maria Manuela Restivo. Fotografias de Maria Manuela Restivo e Diana Completo.
Sr. José, que idade tem agora?
José Vinagre: Tenho 94 anos, nasci no dia 26 de novembro de 1929. Trabalho todos os dias, agora estou a acabar um presépio. Tenho uma oficininha aqui perto e vou para lá de manhã. Tomo o pequeno almoço e vou logo para lá. Depois almoço e vou outra vez até à hora do jantar.
Ainda são muitas horas!
José Vinagre: Sim, estou contente comigo. É porque ainda me sinto capaz de trabalhar. Já tenho algumas dificuldades na vista, estes óculos também não ajudam muito! Mas estou sempre a pensar em formas de melhorar. Quando me deito na cama penso no que vou fazer de manhã quando me levanto.
Vejam aqui estas peças. Tenho o porco a assar, o caçador, o pastor, um boieiro. Aqui tenho uma matança e a velhota com o burro à frente e o cão à trela. Esse era um pescador, tenho que fazer a cana de pesca. Esse é um cão, aqui os camelos, isto é um cachimbo. E eu nunca fui fumador. Também fiz muitas destas cadeirinhas. As moças punham no chapéu uma cadeirinha quando tinham namorado, eram os noivos que ofereciam. Era sinal que já tinham uma cadeira para se sentar. Era um símbolo de que já estavam comprometidas. Faço umas bolotas também.
A bolota tem algum significado simbólico?
Pedro Vinagre: É o símbolo do Alentejo. Aqui a bolota utilizava-se para tudo, as pessoas pobres usavam-na para se alimentar. Os animais também comiam à base de bolota.
José Vinagre: Para comer cozidas e assadas também eram muito boas! Tantas que eu comi!
Quando começou a fazer este tipo de peças?
José Vinagre: Andava a pastar umas ovelhas de um homenzito. Estava lá um sobreiro muito grande e vi um bocado de cortiça ali no chão. Vou para apanhar esse pedaço e nesse momento passa-me um lagarto aqui por cima da mão. Eu agarrei na cortiça e fiz logo um pastor. E depois do pastor comecei a fazer mais coisas. Fiz uma senhora com uma junta de bois, está lá no museu. Comecei a fazer isto e aquilo, e um dia pensei, vou fazer um presépio. E depois desse fiz outro, e outro, e outro. Um dia estava aqui com a minha mulher e comecei a pensar que tinha que fazer outras coisas. Eu tinha uma barraquita lá junto ao castelo e ia lá fazer umas coisas. Fiz uma bancada para estar ali à vontade e tinha lá sempre tudo com fartura, cortiça, tudo. Agora a cortiça é mais complicada de arranjar. Eu comprava ali em São Lourenço, ao pai do Vítor, que me fornecia sempre da melhor, mas ele deixou-se disso. Mas nunca deixei de ter material, pois pessoas amigas e família arranjaram-me sempre alguns pedaços.
Quantos anos tinha quando fez a primeira peça?
José Vinagre: 15 ou 16 anos.
E na altura trabalhava em quê?
José Vinagre: Trabalhava no campo. Só quando vinha, à noite, é que me punha a trabalhar na cortiça. Cheguei a estar até às onze horas da noite a trabalhar nisto. No outro dia, levantava-me cedo e ia trabalhar outra vez.
Teve outros empregos?
José Vinagre: Trabalhei sempre no campo.
Pedro Vinagre: O meu pai era mestre de campo.
Mestre de campo? O que significa?
Pedro Vinagre: Fazia tosquias, que tinham que ser todas elas trabalhadas, era como um bordado. Como as senhoras têm agora orgulho nos penteados vistosos, também na altura era importante que o serviço da tosquia ficasse bem feito, que as linhas ficassem todas direitas, os cruzamentos todos certos. Foi mestre também em abrir poços, era um dos melhores. Quando o poço era aberto, era necessário revestir de pedra, e ele fazia isso. Ao nível das árvores, fazia as enxertias. Tudo o que eram trabalhos de campo ele fazia, foi várias vezes considerado um mestre nos locais por onde passava e onde exercia as suas obras ou trabalhos.
Significa que ele tinha um conjunto de técnicas e conhecimentos e as pessoas iam-no contratando?
Pedro Vinagre: Sim. E por isso passava algumas temporadas fora daqui. Ainda em solteiro, e depois quando casou, eu ficava aqui com a minha mãe e ele ia às temporadas. Chegava a estar três, quatro, seis meses fora e fazia aqueles trabalhos sazonais. Fazia a época da tosquia, a limpeza do sobreiro, o desbaste das árvores, o abrir dos poços, a ceifa… Ele inclusive foi pescador, na faina do mar.
José Vinagre: Andei em Sesimbra na pesca. Havia lá um alentejano da Comporta que dizia que morria muita gente no mar. E eu dizia: “A gente tem é que andar para a frente”. A primeira vez que entrei num barco a remar foi com um primo meu que me disse “Tu vais à frente. E o alentejano vai atrás de ti. Vai sempre atento para ele não te pregar com o ramo nas costas". Quando chegou a altura de pormos a rede, estávamos numa fundura de 70 metros. E ele virou-se para mim e disse: “De certeza que você nunca trabalhou no mar? Você chega aqui e começa a trabalhar com o remo como sendo já uma pessoa que sabe!”. “Olhe, ajeitei-me.” E então andei lá muito tempo. Durante o dia andava a trabalhar e de noite ia para o mar, mais um primo meu. Cada barco levava três pessoas e iam dois barcos. Eram dois a puxar a corda para a rede vir para cima e houve uma vez que se partiu uma corda daquelas e ficamos logo à rasca! Lá demos a volta e conseguimos vir embora. Quando cheguei disse: se não morri hoje não vou morrer tão cedo! [risos]
Quanto tempo esteve lá?
José Vinagre: Foi em 1950, estive quatro anos.
Foi bastante! Como foi a experiência do mar?
José Vinagre: No mar entendi que havia sempre que fazer. Diziam que não havia que fazer e no mar percebi que havia. Gostava de lá andar, gostava mesmo daquilo. À noite, quando acabávamos de descarregar o peixe, vínhamos para casa e fazíamos uma caldeirada de peixinho. Havia lá uma mulher que tinha muitos filhos, então dávamos todo o peixe que sobrava à mulher. A mulher é que lavava a roupa à gente. A gente pagava-lhe, mas também lhe dávamos peixinho fresco todos os dias.
E depois disso?
José Vinagre: Depois estive no norte, em casa de uma irmã minha. Estive também na casa de uma senhora que era aqui do Redondo. Tratava do jardim por uma temporada. Depois decidi vir embora. Ganhava 150 escudos por mês.
De todos os trabalhos que fez, qual era o mais difícil?
José Vinagre: Para mim todos os trabalhos eram difíceis, todos. Eu aprendi a tosquiar lá em Sesimbra, o meu tio e o meu primo eram tosquiadores. Depois comecei a trabalhar naquilo e a perceber como havia de fazer. Um dia disse ao meu tio “deixe-me aqui bordar esta”. E ficou muito bem. Depois vim para cá e comecei a fazer aqui. As pessoas diziam que eu estava a aprender. E um primo meu disse: “Aprender? Ele ensina-vos a vocês! Vocês são capazes de fazer o que ele faz!?” Nenhum era capaz de fazer.
Então todos os trabalhos que fez eram trabalhos manuais, que exigiam aprendizagem.
José Vinagre: Pois foram. Houve um dia que fui chamado a ir para a tapada do rio cortar sobreiros. Cheguei lá e comecei a subir pelas árvores acima, parecia um gato! Depois estava lá um tipo da família do meu pai que começou a falar comigo, e o gajo começou a puxar por mim. Comecei a cortar os sobreiros, as oliveiras, agora já não posso, mas gostava. Acabava a tosquia e ia para o campo limpar as vides depois de serem vindimadas. Acabava essa safra e ia para a azeitona. Agora estou só na cortiça. E na madeira, porque às vezes também trabalho a madeira.
Pedro Vinagre: Há também uma arte que ele fazia, que era fazer o desbaste do touro bravo, para serem postos nos arados e nas aravessas. Ele punha os touros bravos mansos para emparelhar com outros touros para o trabalho agrícola.
José Vinagre: Vou mostrar-vos uma coisa. Olhem para esta máscara! Era eu mais novo e fiz esta máscara. Passava na vila e ninguém me conhecia! Sempre gostei do Carnaval.
Pedro Vinagre: Só há pouco tempo é que ele deixou de fazer parte dos corsos de Carnaval, porque ele vivia intensamente o Carnaval. Aquilo que ele falou há bocado de ajudar a família que tinha muitos filhos, ele sempre foi assim. Aliás, o que ele sofreu na vida teve a ver com ter um coração grande, ele ficava sempre em último lugar. Os outros estavam sempre em primeiro lugar. E nunca ninguém o viu mal disposto.
Quando percebeu que as pessoas valorizavam as suas peças?
José Vinagre: As pessoas iam chegando até mim e começaram a querer comprar.
Pedro Vinagre: Quando ele percebeu que as pessoas gostavam das peças foi na FIAPE (Feira de Artesanato de Estremoz), que ele fez vários anos seguidos. Aí ele começou a ter clientes assíduos. Houve uma altura em que ele começou a fazer peças para uma quermesse de uma Romaria aqui da terra e havia sempre três ou quatro pessoas que quase se brigavam para ficar com as peças dele. Foi aí que começamos a perceber que as pessoas gostavam mesmo das peças. A algumas pessoas ele era incapaz de dizer que não e nós começamos a tentar que ele não vendesse ao desbarato. Há um cavalo que ele vendeu e que nós não queríamos que ele tivesse vendido. Fez parte das sete maravilhas de Portugal, era a peça que identificava o Paço Ducal de Vila Viçosa. Nós quando soubemos já ele tinha vendido.
Quando houve um interesse mais alargado sobre a obra dele, ele já tinha uma certa idade, certo?
Pedro Vinagre: Sim, quando ele foi para a área do artesanato tinha cerca de 60 anos.
O que acha que diferencia a obra dele em relação a outros?
Pedro Vinagre: É o pormenor. Cada figura tem todos os pormenores. Por exemplo, ele fazia o capote, a samarra e outras vestes que se usavam antigamente. Cada faina que trabalhava no campo tinha a sua indumentária, tanto para o homem como para a mulher.
A cortiça com que trabalha, tem algum tratamento?
José Vinagre: A cortiça era cozida, eu cozia-a. Eu fiz um forno, que ainda lá está, e era lá que cozia. Umas vezes foram lá três senhoras de Lisboa entrevistar-me. Elas também queriam saber quem me tinha ensinado. E eu disse, ninguém me ensinou, isto foi tudo da minha ideia. Elas ficaram muito admiradas. Eu não tinha ninguém na família que fizesse estas coisas, aprendi sozinho. Cortava um bocado de cortiça, punha numa lata, fazia o lume e punha lá a cortiça dentro. Ela fervia e depois de ferver tirava-a para fora e trabalhava nela que era uma maravilha. Agora não faço isso porque não tenho sítio para a cozer. Depois de secar e ficar enxuta, é que começava a fazer os desenhos que queria fazer, e ia cortando com uma serrazinha.
E as peças que faz, de onde vem a inspiração?
José Vinagre: Eu parece que estou a ver as coisas à minha frente. Eu arranjava a cortiça e depois ia cortando com a navalha, e ia ajeitando à medida.
José Vinagre: Esta era a barraca do pôr do sol. Eu construí isto há mais de 50 anos. Vinha para cá todos os dias depois do trabalho. Nós tínhamos animais aqui. Criei aqui coelhos, criei galinhas. No barraco tinha uma banca e as minhas ferramentas, e aqui construí um forno onde cozia a cortiça. A minha esposa e algumas senhoras vinham para cá de vez em quando para conversar neste banquinho, então eu ia aumentando o banquinho.
Pedro Vinagre: Depois de ele começar a vir para cá, vinham outros senhores e um começou a construir uma cabaninha para pôr um animal, outro construiu outra estrutura e isto foi crescendo. Alguns tinham hortas, outros tinham animais. As pessoas juntavam-se aqui para confraternizar. “Onde vais? Vou até à do Zé Santinhas”. Ele é conhecido por Zé Santinhas. Antes as pessoas tinham a alcunha do monte onde nasciam. E o meu pai nasceu na herdade das Santas e das Santinhas, então eram a família Santinhas.
E a câmara nunca o chateou por estar a construir aqui?
José Vinagre: Não. Até fui lá uma vez para falar com o Presidente e ele disse “deixe-se estar à vontade que ninguém lhe diz nada”.
O que gostava que acontecesse às suas peças?
José Vinagre: Eu gostava que as pessoas conhecessem o meu trabalho. Muita gente já conhece e sabe o que eu faço, mas também há muita gente que ainda não conhece.