JOSÉ PIMENTA

Escultura e pintura, Rio de Moinhos

A conversa telefónica prévia já agourava uma boa conversa: "se são do Porto podem vir, gosto muito do Porto". José Pimenta completou recentemente 92 anos (nasceu em 1931), mas enganem-se se pensam que a idade o fez abrandar: continua a esculpir, pintar e conduzir, levando uma vida completamente autónoma. Sempre teve empregos ligados à construção civil, primeiro como ladrilhador, depois como sócio-gerente de uma empresa que o próprio fundou com outras pessoas. Após a reforma, abriu uma loja de antiguidades e começou a fazer alguns restauros, atividade que o leva a iniciar a prática da escultura. Uns anos mais tarde, dedica-se igualmente a pintar, vertendo para velhas tábuas de madeira o seu imaginário idiossincrático. Quem se interessa por arte popular ou outsider seguramente já ouviu falar dele; recentemente, a dupla de artistas Sara & André reuniu parte da sua obra no Museu Municipal de Abrantes, contribuindo para a sua divulgação a um público mais alargado.

Entrevista realizada em Fevereiro de 2023 por Maria Manuela Restivo. Fotografias de Ana Costa.

Senhor Pimenta, obrigada por nos receber. Já tínhamos ouvido falar muito em si! Fale-nos um pouco da sua vida. O que fazia antes de se reformar?

Eu fiz muita coisa. Quando tinha 15 anos já ganhava 50 escudos por dia. Tive uma empresa de construção, era uma sociedade anónima em que eu era o fundador e era o chefe. Eu tenho uma vida muito complicada, construí 100 casas! Sei onde elas estão todas, mas não tinha uma casa minha. Tive sucesso na construção. Devia ser como agora, fico maluco quando pedem 150 mil por uma casa! Mas como é que pode ser?! Então eu fui um anjinho, com certeza [risos]! Não levava caro. Cheguei a ter 100, 110 empregados.

Como era ter tantas pessoas a seu cargo? Sentia muita responsabilidade?

Sentia. E depois quando se deu o 25 de Abril, eu cheguei de Itália no dia seguinte, tinha ido comprar seis mil contos de máquinas a crédito, naquela altura era muito dinheiro. Eram máquinas para fabricar mosaicos. Fabricavam 600 metros quadrados de marmorite por dia! Mas as máquinas estiveram seis meses na alfândega. Por isso é que eu digo mal do 25 de Abril. Deixe-me ver como digo isto sem ser inconveniente: eu critico profundamente o 25 de Abril, mas não sou de direita! Porque eu voto em qualquer partido, não tenho problema. Eles são todos iguais, não se apaixonem. Nas últimas eleições até votei no bloco de esquerda, sabe porquê? Porque a senhora do bloco de esquerda é uma grandessísima trabalhadora, foi ela quem pintou quase parte desta minha situação. Quero lá saber que ela seja do Bloco de Esquerda! Então na altura escrevi para o Conselho da Revolução para ver se recuperava as máquinas, escrevi para todos os mandatários que andavam por lá na revolução, escrevi para tudo! Está a ver o que acontece a uma empresa a esperar seis meses.

 

Também viveu em Lisboa, certo? 

Sim, e tenho tantas recordações de Lisboa! Vivi lá doze anos. Quando estive em Lisboa era um menino bem vestido e bem comido. Ia ao Leão D'ouro e ao João do Grão, ia à Adega Machado, à Mó, etc. Usava camisas da primax, aquelas muito bonitas, usava gabardine... A gabardine também era para encobrir as pernas porque tenho as pernas tortas! [risos]. Quando era pequenino caí de uma varanda e na altura não havia médicos como agora. 

Voltando à sua empresa, como era gerir tantas pessoas?

Eu sou disciplinado e impunha disciplina. Ainda hoje tenho essa mania de acordar muito cedo e de ser rigoroso no trabalho. Não sei se isto é um mau costume ou um bom costume. Quando as camionetas carregavam [os materiais de construção] para o Alentejo, eu às vezes ia com eles para aproveitar para tratar de uns assuntos. E eles perguntavam “Ó Senhor Pimenta, a que horas saímos amanhã de manhã?” “Saímos às seis da manha”. Eu chegava às seis menos um quarto.

Depois reformou-se e começou a ter uma vida santa!

Sim! Ler, descansar, isso faz tudo muito bem. 

Então foi quando se reformou que arranjou este espaço e começou a criar obras.

Exatamente!

Porque é que começou? Foi de um dia para o outro?

Não foi. Eu comecei primeiro em restauros e eu adorava, agora já não. Comecei em restauros de cantoneiras e todas as mobílias que apareciam. E as pessoas adoravam! Depois havia aí um Cristo Rei que tinha os dedos partidos e eu queria fazer as mãos ao Cristo Rei. A minha neta, que é formada em Conservação e Restauro, disse: "Ó avô, não faças isso." "Porquê?" "Porque tu não sabes como é que ele tinha os dedos originalmente!" Essa filosofia para mim não serve. Mas a verdade é que nunca fiz as mãos do Cristo. Depois fiquei assim a ferver, então não faço porquê? Eu tinha um armazém e fui lá buscar quatro pedras. E fiz três Santos António e uma Santa a que chamei de Mãe Piedosa. Depois um rapaz veio aqui e disse: “Ó tio Pimenta, quem fez aquilo que está ali à porta?” “Fui eu!” “Ah, quanto quer por isto?” “40 contos, 10 contos cada uma.” “Pegue lá os 40 contos.” Então comecei a fazer, porque tinha bastantes pedras lá em cima. Também tinha bastantes contactos com um senhor que me trazia isto, que são quase tudo cantarias velhas.

E nunca mais parou!

Pois foi. As senhoras da Câmara é que divulgaram o meu trabalho. A primeira exposição que fiz foi no Banco de Portugal. Foi um senhor que era engenheiro que trabalhava no Banco de Portugal e disse: “Ó Sr. Pimenta, você tem que ir fazer uma exposição ao Banco de Portugal.” Eu disse: “Ó Sr. Engenheiro, não vou." "Então porquê?" "Tenho vergonha, com toda a sinceridade. Então agora vou ao Banco de Portugal com os meus bonecos?!” “Então deixe-mos levar.” “Leve o que quiser.” Levou 18. Ao fim de quatro dias telefonou-me: “Sr. Pimenta, está tudo vendido!” Depois ao fim de 30 dias veio entregar-me um cheque porque vendeu as peças todas.

Que maravilha! Quando é que isso foi?

Foi há 30 anos, quando vim para este espaço. Reformei-me com 63 anos, tenho 93. Depois fiz várias exposições. Aqui, em Torres Novas, em Lisboa, no Sardoal... 

 

E também vendia algumas antiguidades.

Vendia quando as arranjava.

Onde comprava? Ia a outras lojas de antiguidades?

Não ia! Ia mas era só para ver o que eles lá tinham, mas não comprava nada porque já sabia que eles eram careiros! [risos]

Então onde arranjava as peças? Em casas particulares? 

Sim, e depois trazia para aqui. Houve uma pessoa que foi muito importante para mim, o Sr. Engenheiro Mário Rosa. Era uma pessoa com conhecimentos extraordinários! Houve uma altura em que eu comprei um pote com umas asinhas, nem sabia bem o que era aquilo. E ele perguntou-me: “Você sabe o que é isto?” “Não, só sei o preço.” “Quanto quer por ele?” “É caro, 50 contos.” “Pegue lá os 50 contos.” “Sabe o que é isto? É um pote de especiarias, que andavam nas caravelas no século XVII e que traziam as especiarias”. Isso foi nos anos 1980, em que as pessoas andavam avariadas. Por um caixote de sabão com letras davam 30 ou 40 contos, era uma loucura! Ele dizia: “Tenho pena de não ser mais novo.” “Então porquê Sr. Engenheiro?” “Você ainda havia de ser meu sócio. Você é uma pessoa que recebe qualquer pessoa extraordinariamente.”

Um belo elogio. Porque começou a assinar Rio?

Rio porque é a localidade, Rio de Moinhos. Em homenagem a esta terra. Eu comecei a frequentar Rio de Moinhos aos 18 anos, porque tinha aqui um irmão que já faleceu que veio para aqui com 12 anos, para um escritório de uma firma.

 

E vive cá também?

Não, em Abrantes. A minha esposa também teve uma loja de artesanato em Abrantes. Então tínhamos contacto com o norte, íamos buscar aquelas mantas tecidas, de agulha, coisas bonitas! Ia muito a Braga, comprar aquelas fundições, cestinhas. E gostava de ir ao bacalhau à Narcisa, adorava! Gostava de ver o balcão comprido, as mulheres com o xaile pelas costas a beberem por uma tigela! Eu adorava ver aquilo, a minha mulher ria-se. Aquilo para mim era uma satisfação extraordinária.

Com que idade casou? 

Com 25. Ela também era da minha terra. Mas eu namorei muitas raparigas, era namoradeiro. Eu apanhei uma lição no primeiro namoro… Eu fui ter com ela de bicicleta e ela estava à porta a namorar outro! Dei-lhe uma sova!

A ela?!

Não, a ele! E sabe que até hoje somos amigos e nunca falamos disso, ele agora já faleceu.  Depois houve uma rapariga muito bonita, que era irmã de um amigo meu. Um dia eu ia acompanhá-la à escola e ela começou a correr e nunca mais parou, eu a chamá-la e ela a correr! Era assim, tinha namoros deste género.

Tem aqui muitos santos. Acredita em Deus?

Oiça, eu acredito em Deus. Sabe porquê? Nestas situações todas… Olhe que eu cheguei a chorar e até a passar fome, nunca disse isto a ninguém. Para ter dinheiro para o gasóleo, era capaz de comer um cacho de uvas e um pedacinho de pão. E nem a minha mulher sabia.

 

Quando começou a fazer esculturas, começou também a pintar?

Não, só há onze ou doze anos é que faço as pinturas. As pessoas sempre me trouxeram pedras para eu trabalhar.

As pinturas são inspiradas em quê? Tem aqui esta do quadro do Fado, do José Malhoa. 

É, vinha na Flama. Eu invento. Há uma que chamei de namoraditos, e fiz em pedra também, e vendi algumas, vende-se bem. Isto é uma rosa mal feita, também vinha na Flama. Aquela que tem a escada e a menina devia ter algum significado quando fiz, agora pergunta-me o que é e não sei. Esta, por exemplo, é ela a beber o caldo de farinha de milho que a mãe tinha preparado para os caçadores que estavam a chegar, é de um livro que eu tenho. Este aqui, pintei-o, e depois pus-me a olhar e vi que era o Johnson, o inglês todo descabelado. Vieram cá umas inglesas e riram muito! Este é o António Variações [em baixo]. E tenho ali também a Cesária Évora. Uma vez vi um filme dela a cantar na América e ela retirou-se e foi fumar um cigarro sem qualquer protocolo. Encheu a minha alma, assim é que eu gosto! [risos]

 

 

Como é que aparece o convite para fazer a exposição no Museu de Abrantes?

A Sara e o André há uns anos que andam na pesquisa. Então um dia disseram: "Você tem que fazer uma exposição!" E eu disse: "Ah, não quero." Gosto muito deles, são um casal muito simples. Adoro toda aquela simplicidade e honestidade. Eu dizia: "As pessoas têm é pena de mim!" E eles diziam: "Não diga isso!"

Tem vindo cá muita gente por causa da exposição?

Muita, em janeiro foi uma coisa por demais, uma coisa louca! Um dia vendi 400€!! No outro 200€ e eu fiquei um bocado maluco com isso! Eu sei que vendo isto barato, mas eles também não valem mais. Se eu lhes disser que aqueles do beijo, eu faço num instante. Olhe, digo-lhes uma coisa: gosto muito das meninas porque não aplicaram uma coisa que eu não gosto muito, esta coisa do mestre. Nunca me chamaram mestre. Isto foi uma filosofia para embelezar o nome José Pimenta. Muito bem, estou de acordo. Mas não me tratem por mestre que eu não gosto. 

Pois, eu também confesso que não gosto muito dos títulos. Quando me chamam doutora não gosto muito. 

Mas olhe, eu gostava de ser doutor e que me tratassem por doutor [risos]!

Eu também gostava de ser mestre, era sinal que dominava uma arte ou um ofício! [risos]. Muito obrigada Senhor Pimenta, a sua obra é incrível!

Estas coisas, não é por vaidade, mas parece que enchem a alma!