Ao contrário do que sucede com a maioria dos artistas populares, cujo nome é pouco conhecido, já por diversas vezes nos tinha sido sugerida uma visita a Joaquim Pires, um criador inclassificável nascido em Darque em 1952. Foram várias as pessoas que nos aconselharam a viagem até à sua casa e oficina para que pudéssemos conhecer as suas peças e as suas histórias; afinal, Joaquim Pires conta já com um considerável grupo de fãs, e as suas peças figuraram em diversas exposições, como as Bienais de Gaia e Cerveira ou as que realizou no Porto, dinamizadas quer pela Oficina Arara quer pelo Atelier Logicofobista. Trata-se, portanto, de um dos poucos artistas populares que tem vindo a marcar presença em circuitos mais próximos da arte contemporânea.
Um telefonema prévio informou-nos que estaria à nossa espera, “com muitas coisas bonitas para vos mostrar”. Alegre, expansivo e jocoso, Joaquim guiou-nos pelo seu universo peculiar, num dia nebuloso do mês de maio.
Podemos tirar-lhe um retrato?
Sim, mas olhe que eu sou feio! [risos]
Tirem fotos à vontade, até convém. Tirem a tudo, que é bom toda a gente conhecer!
Quando começou a fazer este tipo de peças?
Há muitos anos. Para aí há 20 anos!
O que fazia antes?
Era pescador, andei muitos anos no mar. Depois reformei-me e dediquei-me só a isto. A ver se cai alguma coisita, que a reforma não dá nada.
Quantos anos foi pescador?
Muitos, quarenta e tal.
Como era a vida de pescador?
É uma vida muito ingrata, não desejo a ninguém. Aquilo é só para quem gosta. Eu andei muitos anos embarcado, ao bacalhau. Depois vim para aqui. Aqui o barco era mais pequeno e fazia doer o corpo todo. Depois mais os enjoos... Estava morto por sair. Quando me apanhei reformado, só parei aqui a fazer bonecos!
Com que idade se reformou?
Aos 65. E nessa altura é que comecei a fazer mais os bonecos. Mas já dantes fazia! Só que ninguém me ajuda, não há um ajudante que venha. Nem me arranjam um armazém, estou farto de pedir um armazém! Querem dinheiro, não dá para ter. Se tivesse um espaço, dava mais gosto fazer outras peças, o que me viesse à ideia. E depois toda a gente via. Se 'tivesse tudo espalhado, dava outra graça às coisas. Assim está tudo junto, parecem os soldados todos metidos dentro do quartel! [risos]
É uma vida muito ingrata...
Lembra-se da primeira peça que fez?
Ah, a primeira peça! Não me recordo, já não está aqui. Às vezes, vejo peças e sei que fui eu que as fiz, mas a primeira já não me lembro.
Em que material começou a trabalhar?
Madeira, metal, eu faço tudo!
Mas como é que começou, foi de um dia para o outro?
Eu andava ao mar e já tinha esta ideia de fazer as bricolages. Mas como ia para o mar, não tinha tempo. Agora que me reformei, tenho tempo e vou fazendo. Não posso é fazer muito porque depois não tenho onde as pôr, não há compradores! A minha Zefa Carqueija está sempre a dizer "Porque é que fazes, isto não sai!". Eu faço-as, guardo-as e quando aparecer alguém já estão feitas. É isso que eu lhe digo.
Eu andava ao mar e já tinha esta ideia...
Então, agora passa aqui os seus dias?
Sim, passo. Aqui é onde eu trabalho, nesta oficina pequenina.
E também vive aqui?
Sim. Isto é meu. Desculpem lá, está tudo cheio mas eu não tenho mais espaço. Quando vieram aqui os outros filmar, também foi assim. Já vieram aqui uns sujeitos da Colômbia para me filmar. Andaram comigo na praia, com a antena e tudo, e eu a falar! Vieram de propósito ter comigo.
Como é que o contactaram?
Pela internet. Estiveram aqui todos contentes. O homem a tirar fotos, deitava-se aí no chão no meio do pó. Eu a trabalhar e o serrim a cair em cima dele! [risos]
Que ferramentas é que usa?
A minha ferramenta é fácil, é só o que está ali em cima daquela mesa. É esta serra, é o martelo, e é isto. Não tem mais nada, e chega. Só com esta rebarbadeira faço as imagens que vocês veem ali, de madeira. Para o ferro tenho que usar outro disco. Mas de resto, não tenho mais nada. Eu aproveito tudo, também faço bonecos a tocar bombo. Pronto, é isto! De uma parabólica, aproveito tudo. Olhe este! Ainda não viram este. Vão-se rir. É uma malandrice! O vento dá-lhe e o gajo está sempre a trabalhar! [risos] Falta pintar. Mas está fixe!
É uma malandrice!...
Quem compra as suas peças?
Há pessoal que vem aqui, vê e leva. Uma ou duas peças. Às vezes é para exposições.
Vimos há pouco tempo uma exposição sua organizada pela Oficina Arara / Atelier Logicofobista.
Sim, está ali uma peça que voltou de lá.
E tem corrido bem, tem vendido bem?
Tenho! Em Cerveira tem lá um MG descapotável, todo trabalhadinho.
Esteve na Bienal de Cerveira?
Foi!
Não faz feiras?
Não, faço exposições. As pessoas vêm cá e levam cinco ou seis peças.
Quais são as peças que gosta mais de fazer?
Tudo! Eu não tenho uma que não goste, eu faço o que gosto de fazer. Eu vou-lhe explicar: eu vou à praia a ver se topo madeira. Pego num pau, dou meia volta ao pau, não presta. Depois olho assim para trás, vou buscar o pau, e chego aqui e faço um pássaro ou dois. E olhe que lindos eles ficaram. Não estão bonitos? É assim que eu faço. Vem aqui muita gente da França e levam muitos pássaros destes brancos e daqueles cor-de-rosa.
E como é que essas pessoas conhecem o seu trabalho?
Muitos são portugueses daqui. E depois, levam, chegam lá e eu também mando mais fotos para lá. E toda a gente tira fotos e eles lá veem e vêm aqui comprar.
Eu vou-lhe explicar...
Faz moldes para as peças?
Sim, faço. Desenho, faço e ponho na chapa, em ponto grande ou pequeno. Olhe, está aqui um cãozinho, um desenho de um cão, é de eu marcar. Este também é malandro, também tem um piroquinha grande! [risos] Tenho para aí muita coisa mas já não sei deles. Tenho aqui as asas daqueles gansos. Os olhos mando-os vir da China. Isto são os berlindes para os olhos dos crocodilos.
Manda vir pela internet?
É uma amiga minha que manda vir da internet. Isto é o que fica bem ali. Isto é para os crocodilos, esses bichos venenosos!
Que outros objectos usa na criação das suas peças?
Também aproveito lampadazinhas para pôr nos aviões. Este dá luz de noite, alumia tudo aqui de noite, este avião. É um espectáculo!
E que peça é esta?
É um padre e uma Nossa Senhora de Fátima. Também dá luz. Eu vou acender para vocês verem.
Costuma assinar as peças?
Todas! Tudo o que sai daqui, sai assinado e com data. Uma vez enganei-me e em vez de 2000 pus 20000!
Este dá luz de noite, alumia tudo...
[A filha de Joaquim, Lina Meireis, aparece para o chamar para o almoço.]
Eu não ligo nada a isto! Fui habituada a isto e não ligo nada. Ele está sempre a fazer, não se dá quieto.
Lembra-se de ele ter começado a fazer?
LM – Desde sempre! Quando eu era pequenina ele fazia umas igrejinhas com conchinhas, e umas capelas em sobreiro. É um artista!
JP – Eu gabo-me, sou um artista, sou um gabarolas do caraças! Eu gabo-me do que sei fazer, se não souber não me gabo.
É um artista!...