Manuel e Francisco Esteves Lima são filhos do afamado ceramista Mistério, uma das primeiras pessoas a dedicar-se, em Barcelos, à criação de figuras em barro. Num percurso profissional não isento de dificuldades e contratempos, têm conseguido sedimentar um estilo próprio e inimitável, com base no legado de seu pai, marcado por um imaginário profano e associado frequentemente à crítica social.
Nesta entrevista de Outubro de 2019, falámos das suas trajetórias no figurado, mas também das suas perspetivas relativamente ao crescente interesse nesta prática nos últimos anos.
Como foi a vossa chegada ao barro?
Francisco – Nós nascemos no meio disto. O nosso pai [Domingos Gonçalves Lima “Mistério”] é que começou com esta arte, e nós desde miúdos aprendemos a lidar com o barro, a preparar o barro. Começou com a modelagem, aprender as técnicas… e depois fomos aperfeiçoando. Mesmo assim, ainda temos muito que aprender! Nunca se sabe tudo, nem nunca se vai saber tudo.
Houve alguma altura específica em que se profissionalizaram?
Francisco – Não, trabalhamos nisto desde miudinhos.
Manuel – Quer dizer, agora trabalhamos nisto a 100%, mas houve uma altura em que não. Optámos por parar numa altura em que fomos para França. Eu andei 13 anos nessa vida… Estava lá dois meses, três meses… e depois regressava. Era um trabalho sazonal.
E o que fazia em França?
Manuel – Trabalhava na agricultura.
Em que altura é que isso foi? O barro não compensava?
Manuel – Claro! Foi recente, a última vez que fui foi há três anos.
Nós nascemos no meio disto...
Aprenderam tudo com o vosso pai?
Francisco – A modelagem sim, a pintura foi com a mãe [Virgínia Coelho Esteves]. A minha mãe é que era a artista da pintura. Ela sempre pintou as peças do nosso pai e depois as nossas.
Manuel – O meu pai era vivo e nós trabalhávamos com ele, trabalhávamos todos para a mesma firma. Embora, claro, a gente assinava não só “Mistério” mas também “Mistério, Filho Manuel”, ou “Mistério, Filho Francisco”, consoante o caso. Agora assinamos juntos, apenas “Mistério Filhos”.
Onde é o que vosso pai aprendeu a modelar?
Francisco – Aprendeu com 12 anos com uma tia dele em Galegos São Martinho, que fazia aquele figurado antigo, a Teresa Carumas. Ela fazia para vender na feira de Barcelos, que é à quinta-feira.
Que tipo de pessoa era o vosso pai?
Francisco – O nosso pai era um criador, era uma boa pessoa. Respeitador, sabia lidar com as pessoas. Quem o conhecesse sabia bem aquilo que era.
Manuel – Era divertido. E muito preocupado. Quando via um filho que não estivesse bem, notava-se nele, ficava preocupado… Ele era artista. Quando ele estava a trabalhar muito calado e parava a olhar para as peças que estava a fazer, já estava a criar!
Vocês chegaram a acompanhar o vosso pai em feiras?
Francisco – Sim. Normalmente ia ele e a minha mãe.
Que feiras é que ele fazia?
Francisco – Fazia a do Estoril e a de Cascais. Mais tarde a do Porto, que é mais recente. Também a de Barcelos. Vila do Conde, fez um ano ou dois. E depois a Câmara de Barcelos levava-os até Espanha. Havia uma altura em que o meu pai ia muito para lá fazer exposições.
E vocês continuam a fazer as feiras?
Francisco – Sim, fazemos cerca de quatro.
Manuel – Se não fossem as feiras… já tinha acabado!
Francisco – Barcelos costuma ser muito bom para nós. A FIL também. Na semana passada estivemos em Vila Franca de Xira. Vila do Conde também se faz… Às vezes basta aparecer um colecionador para as coisas correrem bem, mas nem sempre acontece! É mesmo assim.
Manuel – Enfim, isto é uma arte em que tem que se ter gosto. Se alguém quer iniciar esta arte com o objetivo de ganhar muito dinheiro, pode tirar o cavalinho da chuva que não tem hipótese. É trabalhar muito e ganhar aquilo que se pode!
Tem que se ter gosto...
Como é que lidam com o legado do vosso pai? Tiveram o objetivo de criar continuidade com a obra dele?
Francisco – Sim, a linha tem de se manter sempre. O meu irmão mudou um bocadinho mas nunca deixa de ser a linha Mistério.
Manuel – Exactamente, mas é preciso mudar, se não torna-se muito monótono! É preciso fazer coisas diferentes. Claro que ainda se faz peças criadas por ele! O pessoal ainda quer aquelas peças com nariz enorme, orelhas enormes, que eram as características dele. Eu pessoalmente gosto mais das peças que faço! É claro que este estilo de presépio de cinco velas… isto é o estilo dele, mas tem muitas coisas que fui eu que criei. Por exemplo, os Reis Magos que ele punha não eram como esses, eram diferentes. O anjo, por exemplo, já pus aquele a tocar violino, e ele não punha os anjos a tocar instrumentos. Normalmente era com os braços abertos, mãos direitas… O menino agora está em cima de um pano, ele punha a imitar a palha.
A linha tem de se manter sempre...
Lembram-se do Ernesto de Sousa? Ele foi das primeiras pessoas a expor o vosso pai, fez uma exposição com peças dele em Lisboa em 1964.
Francisco – Não me lembro. Eu nasci em 1964!
Manuel – Eu sou mais velho três anos e também não recordo!
Francisco – Muitos dos amigos e colecionadores que o meu pai tinha eram da zona de Lisboa. Do que eu me recordo, as exposições que ele fazia era uma no Estoril, no tempo da ditadura, e outra em Cascais. Essa exposição durava um mês. Fala-se mal da ditadura mas eles apoiavam o artesanato. Mas também eram poucos a trabalhar, eram só três a trabalhar no figurado: a [Rosa] Ramalho, a [Rosa] Côta e o meu pai. Eles vinham cá buscar o artigo e levavam para lá. Pagavam alojamento, alimentação, e ficávamos lá o mês todo. Essa foi uma altura em que ele voltou a dedicar-se ao artesanato com mais força. Ele teve altos e baixos. Houve mesmo uma altura em que ele deixou. Eu não me recordo disso, ele é que nos disse. Dedicou-se às feiras anuais mas com indústria, cerâmica industrial a partir de moldes, e fazia o artigo dele nas horas vagas. Não dava para dedicar-se só ao artesanato, não dava para sobreviver. E houve outra altura em que ele se dedicou também às figurinhas de presépio, com molde, pelo Natal. Já tinha alguns clientes para aquilo. Ele parava o artesanato e dedicava-se só àquilo. Depois por volta de março dedicava-se outra vez ao artesanato até setembro, mais ou menos. E aí voltava a fazer as figuras do presépio. Depois houve uma fase em que isto começou a ter mais venda, no tempo em que vinham cá muitos espanhóis – ele vendia tudo para os espanhóis.
Em que altura?
Francisco – Anos 70, 80. Era quando os espanhóis vinham cá e compravam tudo. Era uma fase que chamávamos nós “os anos de ouro”.
Manuel – E foi nessa altura que o nosso pai esteve inclinado para ir trabalhar para Espanha.
Francisco – Foi depois do 25 de abril, quando as coisas melhoraram um pouco. Mas foi passageiro. Depois voltou a cair. Já nos anos 80, 90, começou a ter aquela queda muito lenta. Houve uma altura em que eu também deixei isto e fui para os Estados Unidos. Mas estive lá pouco tempo, não gostei, vim-me embora. Estive lá cerca de 9 meses, mas a minha ideia, quando fui, era ficar por lá. Mas não calhou. Depois dediquei-me outra vez a isto até agora.
Manuel – Quando ele foi para os Estados Unidos, fiquei eu e o meu pai a trabalhar. Mas olhe, quando eu e ele deixarmos, esta arte morreu.
Não têm familiares que queiram continuar?
Manuel – Não, e a família é muito grande. Os nossos pais tiveram 12 filhos, têm muitos netos e ninguém quer.
Quando eu e ele deixarmos, esta arte morreu...
Mas como é a vossa situação agora, dá para viver só do figurado?
Francisco – Dá, dá para viver, mas não dá para encher os bolsos! [risos]
Manuel – Dá para fazer uma vida digna. Nós também somos poupados! Não fazemos férias no estrangeiro, nada disso!
Francisco – Não trabalhamos oito horas por dia, trabalhamos doze e treze!
Como é que é viver uma vida dedicada ao barro? Já devem ter passado por períodos muitos distintos nestes últimos anos.
Francisco – É difícil. No artesanato sempre houve altos e baixos, mesmo no tempo do nosso pai. Depois dele falecer [em 1995], houve uma altura muito em baixo. Na altura até pensámos em fechar as portas definitivamente. Depois foi retomando. Nós tínhamos aí muito artigo… E não sei se foi um colecionador que soube da morte do meu pai, mas veio cá e levou bastante artigo. Se calhar foi essa a altura do novo arranque. Houve uma fase em que éramos oito pessoas a trabalhar. Na modelagem, eram quatro, e na pintura, outros quatro.
Dá para viver, mas não dá para encher os bolsos...
Como é que vocês encaram o facto de haver agora muita gente a produzir figurado?
Francisco – Aqui no concelho de Barcelos há três ou quatro freguesias onde se trabalhava muito no barro. No figurado, é mais esta freguesia e Galegos São Martinho. Mas por aqui, era uma zona onde havia muitas indústrias cerâmicas. Essas indústrias começaram a falir e essas pessoas ficaram no desemprego. Viam alguns artesãos que existiam por aqui que não fechavam portas e achavam que eles viviam bem. Tentaram começar a fazer as coisinhas à maneira deles, com cópias…
Manuel – Eu com 7 anos já modelava peças e já vendia. São muito anos. Eu sou um indivíduo que gosto de criar. Às vezes saem assim umas coisas engraçadas. E eu fico chateado porque aqui nestas três freguesias quase tudo trabalha ou já trabalhou na cerâmica. Há muita gente habilidosa, sem dúvida, mas criadores…
Francisco – Criadores há poucos.
Manuel – Há pessoas que vêem uma peça e acham piada, acham que ela pode ser vendável. E depois copiam, não têm problemas nenhuns!
Francisco – A nós já nos copiaram várias peças!
Manuel – E há pessoas que realmente reconhecem que o criador foi fulano, mas outras não, compram simplesmente ao mais barato! Normalmente esses copiadores vendem mais barato. E é chato!
Francisco – Agora há algumas peças que nós criamos que não expomos durante alguns anos, deixamos ficar aqui no atelier. Só depois, passados alguns anos, é que expomos. E já tivemos dois ou três casos em que expomos e sabemos que daí a uns meses já vai aparecer no mercado. É dito e feito! Um artista não faz isso. Esses são os habilidosos, que se inspiram nos outros.
Há muita gente habilidosa, mas criadores...
Das vossas criações, há algumas de que se orgulham especialmente?
Manuel – Não! Isso é quase como ter preferência por um filho! [risos]
Mas quais consideram as vossas criações mais icónicas?
Francisco – “A Ceia dos Diabos”, “A Árvore do Mal”... Tudo que o que seja profano. É a nossa marca. E a gente também tem que ter cuidado... [risos] Já temos algumas histórias com padres. Ainda não nos abordaram, mas já mandaram a boca! [risos]. O meu pai, quando fazia “As Alminhas”, punha no inferno o pessoal do clero – o padre, a freira, o bispo – e a outra metade com almas comuns. Um padre que veio cá com duas senhoras, viu “As Alminhas” e disse: “Caramba, vocês têm mais gente do clero aqui no inferno do que almas comuns!”. E nós dissemos: “E é alguma mentira!?”. Mas nós nem sabíamos que era padre, foi a senhora que estava com ele que disse! [risos] “As Alminhas” é uma criação do nosso pai. Foi a primeira peça dele a ser premiada, já há 60 e tal anos. E é uma peça que nós ainda fazemos, porque ainda tem muita procura. Ele teve várias que foram premiadas, mesmo na FIL. “O Galo a Galar”, que é uma peça muito conhecida. “A Ceia de Cabeças”, “O Presépio de Sete Velas” – igual a este, mas com mais duas velas. Mais? Há mais peças…
"Têm mais gente do clero no inferno do que almas comuns!”...
Como vêem o futuro desta arte?
Manuel – Nós não estamos muito preocupados com isso... Acaba quando acaba. Amanhã é outro dia.
Francisco – Só se vive um dia de cada vez!
Manuel – Exactamente! Eu tenho duas filhas e elas não querem. O meu irmão também tem duas e também não querem. Portanto…
Francisco – A minha filha mais velha tinha jeito, que ela vinha comigo para aqui quando era pequena. Ela tinha jeito. Mas eu próprio disse para ela estudar, que não ia ganhar muito dinheiro com isto. Hoje ela tem 22 anos e diz-me: “Tu afinal tinhas razões, és um teso do caraças!” [risos]
Gostavam de ser lembrados de alguma forma no futuro em relação à vossa arte?
Francisco – Não, nem sequer pensamos nisso! A fama que o meu pai ganhou, não a quero ter, de maneira nenhuma. Isso passa-me ao lado completamente. Nós estamos aqui porque gostamos, não estamos a olhar ao nome.
Manuel – Que me interessa a mim ter muito dinheiro, ser muito bonito?… Não serve de nada! Uma pessoa apanha uma doença e o dinheiro não cura!
Francisco – Uma coisa é certa: nós ao fazermos isto divertimo-nos bastante. Dá gozo! A gente vê a peça feita e ri-se! Claro que nem sempre estamos assim tão bem dispostos. Quando o trabalho corre mal, às vezes sai um palavrão!
Manuel – Mas isso é a todos os portugueses! [risos]
Acaba quando acaba...