IDALÉCIO

Artista e colecionador de arte popular, Fermentelos, Águeda

Conhecemos Idalécio através da Cruzes Canhoto, galeria de arte do Porto onde expõe regularmente desde 2016. Idalécio sempre nos pareceu uma figura peculiar, já que nele parecem coexistir dois mundos aparentemente contraditórios: o do metalúrgico, organizado e metódico, que trabalha numa fábrica de segunda a sexta-feira; e o do artista "outsider", que apresenta uma produção artística surpreendente, difícil de enquadrar e categorizar em cânones convencionais. Só mais tarde nos viemos a aperceber que Idalécio era também um prolífico colecionador de arte popular, não porque nos tivesse dito diretamente – afirmar-se como artista ou colecionador não faz o seu género – mas porque fomos notando a quantidade de peças que afirmava ter em casa, quando o assunto era arte popular. O que, pensando bem, faz todo o sentido, já que a sua obra está repleta de referências à cultura popular portuguesa, sendo mesmo esta a temática de muitos dos seus quadros. Uma visita à sua extensa coleção não atenuou, contudo, a impressão de estarmos perante uma personalidade verdadeiramente idiossincrática, possuidora de um gosto invulgar. As suas obras convivem com a sua heterogénea coleção - que inclui arte popular, africana e contemporânea - e com as suas memórias familiares, desde recordações de viagens a fotografias de família.

A pedido de Idalécio, e ao contrário do que normalmente costuma acontecer, o guião da entrevista foi enviado previamente e respondido por escrito. Contudo, e porque parte do nosso processo passa por fazer perguntas in situ, esta entrevista divide-se em duas partes: a primeira parte é constituída pelas questões a que Idalécio respondeu por escrito; e a segunda constitui, mais que um conjunto de perguntas, uma conversa que mantivemos enquanto visitávamos os espaços da sua coleção em Maio de 2019.

PARTE 1

Quando e como começou o seu interesse pela arte popular?

O meu caso não foi muito convencional. Na minha aldeia, na Piedade, havia alguns artesãos de profissão. Um ferreiro, dois ou três sapateiros, um alfaiate que também era barbeiro, uma senhora que fazia esteiras de bunho, e um pescador do rio que fazia as redes e armadilhas. Eu gostava de ir ao ferreiro, ia lá muitas vezes para "picar" as foucinhas. Via-o a forjar o aço na forja de fole, a malhar na bigorna o ferro incandescente e isso para mim era um delírio! O ferreiro também era músico e ensaiador de peças de teatro. Organizava e ensaiava as contradanças e gostava de ajudar o padre na missa e nas procissões. Penso que foi neste ambiente que surgiu o meu interesse pela arte popular.

Quando começou a colecionar? Lembra-se do primeiro objeto que adquiriu?

Colecionar, não sei bem. As duas primeiras peças que guardei foram um podão que vi fazer no ferreiro, por encomenda da minha mãe, e um barril que usei quando era criança. Vi o ferreiro gravar a marca no podão e o barril foi uma tia minha que o trouxe de uma excursão ao Senhor da Serra, onde se vendia muita louça de barro de Miranda do Corvo. Como vê, eram peças utilitárias, feitas por artesãos. Peças bem-feitas. Fui guardando peças que iam entrando em desuso, inclusive até algumas ferramentas utilizadas pelo ferreiro da Piedade. Só mais tarde, no início dos anos 80, é que comecei a comprar figurado da Maria Sineta e da Ana Baraça, que era vendido nas feiras pelos comerciantes de louça utilitária de barro.

Faz uma contagem dos que objetos possui? Tem algum inventário ou alguma forma de organização da coleção?

Aluguei este espaço onde concentro peças de arte popular e também trabalhos meus, para separar esta minha vertente do espaço ocupado em família. A coleção tem vários propósitos: serve para deleite do olhar, para decoração, para aprender sobre a diversidade dos estilos, dos temas e materiais usados e também serve para a minha própria inspiração criativa. Recentemente resolvi fazer um inventário só de peças de figurado, por autor, mas desisti. Acho uma perda de tempo e não me dá gozo nenhum. Basta-me ter as peças. Olhar para elas. E gosto de as mostrar a apreciadores. Frequentemente faço circular as peças, especialmente as que tenham mais funções decorativas, renovando o visual dos espaços, dos locais onde passo a vida.

Como decide adquirir novos objetos? Faz pesquisas prévias?

A minha coleção é heterogénea, não é pensada previamente, não procuro nada específico. Impera o improviso. Não sei se lhe chame coleção, pois trata-se de um conjunto de objetos que só fazem sentido se expostos pelo próprio. Os objetos que compro têm que ser baratos e tenho que gostar deles. Muitas vezes troco peças e quadros que faço com os artesãos. Por isso, o que compro é para ficar exposto e de preferência bem vísivel. Embora muitas vezes fique um pouco compactado por falta de espaços.

Onde compra as peças? Em feiras ou diretamente nos espaços dos artesãos?

As peças que compro tanto podem ser adquiridas diretamente aos artesãos, como em feiras de artesanato e até em feiras de velharias. Gosto de frequentar os espaços onde os artesãos trabalham, falar com eles, apreciar o seu trabalho. Às vezes até trago peças para pessoas que me pedem. Vou sempre às feiras, mas não posso ir a todas. A FIA em Lisboa, a Feira de Artesanato de Barcelos, a de Vila do Conde, são referências, como todos sabemos. Têm a vantagem de ser feitas numa época em que os artesãos têm bastantes peças. Há outras feiras interessantes para o final do verão, mas habitualmente os artesãos já não apresentam as melhores peças.

Qual a sua opinião sobre as feiras de artesanato atuais?

Na minha opinião, a arte popular (e não só) apresentada nas feiras está cada vez mais rica, e outra coisa não era de esperar. No entanto, há uma grande confusão! Mistura-se o artesanato com o fabrico industrial. Em muitas áreas. Os objetos são demasiado repetitivos e condicionados pelo mercado. Veja-se, por exemplo, os santos populares e presépios... Parece-me também que há artesãos e artistas muito bons que não estão representados nas feiras. Há de tudo. São feiras.

Tem algum artista preferido? Se sim, qual (ou quais)?

Há artistas de arte popular que admiro. Não só pelo seu trabalho, mas também como pessoas. Há outros com quem tenho amizade. Posso citar alguns, especialmente dos que tenho peças: o Sérgio Amaral, um grande mestre do barro negro, com quem faço trocas e parcerias e aonde vou muitas vezes fazer peças em barro negro. A Júlia Côta, o António Ramalho, o Xico Tarefa, tantos outros... Todos barristas. Gosto de todos! Estou a lembrar-me do velho João Mértola do Redondo, que é uma pessoa divertíssima... uma personagem. O Carlos Damas do Alandroal que faz um trabalho a canivete, em madeira de aloendro, que é inédito. Sei lá... O Adérito Almeida, de quem sou amigo e talvez seja a pessoa de quem mais peças de barro negro tenho.

Qual a importância para si da sua coleção? Como se relaciona com ela?

Esta é a melhor pergunta que me fez! Olhe: a minha coleção, não é coleção nenhuma e não vale nada. Qualquer dia desfaço-me destes objetos e fica o vazio! Minimalista. Também é lindo! O que é rico é o pensamento. Isto parece uma contradição e se calhar até é. Os objetos em si, um a um, não têm valor comercial. Um ou outro até pode valer qualquer coisa. Não tem importância. Vejo arte e histórias de vida em todas as peças. Muitos objetos têm uma história pessoal e esse é o encanto. Tenho peças com defeito que os colecionadores convencionais não querem por perderem valor. Para mim é o contrário: partiram, reparei-as, tiveram essa história. Tenho chocalhos, cáguedas, alguidares, barris, tarros, jugos de bois, panelas... Grandes histórias de vida! Sons dos chocalhos do gado nos vales. O Senhor Abílio, artesão e ex-guarda fiscal de Rio de Onor, ofereceu-me uma vara da justiça e uma pedra para afiar facas da pedreira local, com uma base em madeira, feita por ele. O Senhor Joaquim Siquenique, artesão das cabaças e da cortiça, vendeu-me muitas peças e contou-me muitas histórias. Agora está no lar do Redondo. O Guilherme dos chocalhos Pardalito levou-me à fábrica para ver o processo de fazer os chocalhos e lá estavam os jovens a dar os primeiros passos da aprendizagem artesanal... Isto é belo! A resposta à sua pergunta só pode ser: o meu relacionamento com as peças é AFETIVO, mas um pouco desprendido. Se me desfizer da coleção, entro noutra. Ficam as histórias.

Uma vez que também cria arte, como se define enquanto artista?

Crio arte, diz bem...  Criei os meus próprios brinquedos, em criança, por necessidade. Criei, como metalúrgico, muitas ferramentas, moldes, cunhos e cortantes. Tudo isso tinha lógica. Era racional, com funções práticas e utilitárias. Agora crio coisas que não existem. Diferentes. "Disparates". Faço tudo ao contrário. Mas é mesmo ao contrário! Faço aquilo que só eu imagino. Peças únicas. Peças loucas. Peças tortas. Quadros com figuras e posturas que não existem. Imaginário popular. Inspiração nos mestres artesãos portugueses. Inspiração no imaginário de um velho livro de mitologia grega e romana que herdei do meu pai e li e reli quando era criança. Resultado: não é vendável, mas é divertido. Quem vê, comenta, diverte-se, acha giro. Vão embora para outro lado e talvez comprem qualquer quadro que lhes apareça inspirado no Basquiat, Matisse ou outro criativo original. Dá-me gozo fazer o que bem me apetece. De facto, poderia imitar quem eu quisesse. Mas não quero. Gosto tanto de ser assim! Irreverente! Uma figura original. Sou metalúrgico, não sou artista. Tenho gostos simples e gosto de arte popular. Da essência, e também da sabedoria. Da sabedoria dos mestres. A partir do início do ano 2020, vou dedicar-me "profissionalmente" só à arte. Gosto de números redondos e 2020 é um desses números. Como vê, a minha produção artística e a minha vida relacionam-se com a minha coleção. Não vale nada, é divertida e acho que tem ALMA. Talvez seja um bocado ao contrário de mim, que sou pouco divertido, mas tenho alma e acho que tenho sabedoria, que nos tempos que correm também não vale nada, mas para mim é um tesouro.

Como olha para as categorias de artista popular, artista contemporâneo ou artista singular/bruto?

Quanto a esta questão, tenho uma opinião formada. Acho que as categorias de arte são rótulos separadores que ninguém sabe, nem pode saber, onde começam ou acabam. A arte popular acho que se mistura, também é "arte singular", "arte bruta", "arte espontânea", "arte qualquer coisa"... Mas de uma coisa estou certo. Dificilmente algum desses artistas ficará rico com o seu trabalho, e se der para viver já é uma sorte. Então em Portugal, que é um país tão pequeno, ainda pior. Os marchands ainda ganham. Até podem ganhar muito. São eles os promotores, têm despesas várias e têm que viver disso. Relativamente à criação artística/arte popular que conheço em Portugal, sei pouco mas já vi muita coisa. Acho que o que interessa é cultivar o olhar. Sentir e apreciar o que é feito com alma, com saber, com criatividade e imaginação. Novo ou tradicional. Por exemplo, o caso dos bonecos de Estremoz, são muito repetitivos nas figuras em si, mas são distintos de artesão para artesão. Acho que na arte popular, como em qualquer arte, há quem saiba fazer bem, há quem tente fazer alguma coisa, há quem seja criativo/imaginativo, há quem aldrabe... Todos são "autênticos", só que uns são genuínos, outros são ingénuos e sonhadores, outros são aldrabões ou comerciantes, enfim... Também há mercado para tudo. Quem compra "arte" tem que se sentir bem com ela. Quem tiver alma e cultivar o olhar, vê. Também aqui não deve haver rótulos.

A arte popular portuguesa tanto está presente em feiras como em galerias de arte. Como vê o desenvolvimento da arte popular nas últimas décadas?

A arte popular está presente em feiras, galerias, mas também nos palcos e igrejas. Muita gente se esquece dos ex-votos. Atualmente creio que se fazem poucas pinturas em Portugal com essa finalidade. É pena. Há muita autenticidade nesse tema. Acho que a arte traz turismo e faz movimentar muita coisa. Apesar dos turistas que vêm a Portugal levarem nas mochilas uns souvenirs de farracatanada, vêem muito a arte em galerias, museus, feiras, etc., e alguém lucra com isso. Não os artistas... Atualmente há muitos artesãos e artistas com elevado nível de qualidade, mas faltam-lhes incentivos e mercado. Há associações regionais de artesãos, até com locais de venda associativa, que me parecem um bom caminho. Deveria haver um Museu Nacional aberto com galeria comercial, com peças de qualidade, que fossem rodando frequentemente, etc. Há bares, restaurantes, adegas, hotéis, cuja decoração já incorpora objetos de arte popular. Cada vez haverá mais... Leva tempo.

Como vê a arte popular portuguesa na atualidade, como encara o seu futuro e salvaguarda? Acha que ainda faz sentido falar em arte popular?

A minha visão sobre a arte popular na atualidade é muito reduzida. Não sou nenhum estudioso dessa matéria. No entanto, a minha opinião é esta: o fado e o cante alentejano estão em alta e são património. Os chocalhos e os bonecos de Estremoz, idem. Os tapetes de Arraiolos, os bordados de Castelo Branco, o figurado de Barcelos, não são património português? E o azulejo? E os trajes de Viana? Então estamos à espera de quê para pôr cá fora o melhor que temos de nós e mostrar ao mundo que há um Portugal genial?! Faz todo o sentido falar em arte popular e promovê-la. Esse trabalho está em marcha. Não é o que você está a fazer também? A galeria Cruzes Canhoto, no Porto, não está a fazer o mesmo? Não está a divulgar tudo o que se relaciona com arte popular e tradições, como as máscaras regionais, o artesanato, a arte feita pelo povo, os burros e suas tradições? Até eu, um aldeão do interior, "estou nessa". Dizem-me que já há trabalhos meus em várias partes do mundo e em muitas coleções portuguesas. Se assim é, vamos em frente!

PARTE 2

Idalécio, muito obrigada por ter respondido às nossas questões de forma tão completa. Agora gostaríamos de conhecer o espaço onde guarda a coleção, bem como a pessoa que lhe está por trás.

Venham! Começa aqui pela garagem. Aqui tenho peças de barro negro de várias regiões. Tenho peças do Joaquim Alvelos, do meu amigo Adérito Almeida, que faz isto à mão, porque ele não sabe trabalhar na roda. Tenho de Vilar de Nantes. Tenho do Sérgio Amaral. Eu conheço isto tudo! Tenho também aqui uma pequena parte das bilhas que coleciono... Aquela peça de aquecer o café é antiquíssima, trouxe-a de uma senhora de Chaves. Acolá, a última e a primeira, que estão muito bem cuidadas, eram de uma senhora de Carregal do Sal. Aquele barril que tem uma ponta de madeira foi o meu primeiro barril, foi uma das minhas primeiras peças de coleção.

Vamos ver a cozinha! A decoração da cozinha foi pensada para a arte popular. Aqui tem pratos do Martelo do Redondo, do Xico Tarefa, tenho estas peças de Nisa... Tenho aqui este da olaria Alfacinha, de Estremoz. E esta aqui é a maior relíquia que eu preservo, que era de uma trisavó de uma tia minha. Era onde nós púnhamos sempre o vinagre. Isto terá uns 300 anos! Até tem desgaste da passagem do vinagre. Ainda cheira... e não tem vinagre há dezenas de anos! Isto é uma coisa tão simples, é como o cálice de Cristo do Indiana Jones. É a coisa mais simples, não é? Repare na coleção de galos! Tenho aqui um galo que não existe em lado nenhum, senão no Museu em Barcelos. Foi dos primeiros galos que se fizeram em Barcelos, aquilo é uma relíquia! Tenho aqui os cestos... São todos diferentes, de todos os formatos. Veja a variedade!

[Após a visita a sua casa, fomos conhecer o espaço onde Idalécio guarda a grande maioria das peças que possui.]

Idalécio, que surpresa! [risos] Não estávamos à espera de tantas peças!

Vocês agora vêm direitinhos, não se mexem, com pezinhos de lã! [risos] Por onde vamos começar?

Como organiza esta sala? Move as peças?

Às vezes. Mas tenho isto aqui tipo puzzle e é feito ao longo de muitos anos. Se eu toco nisto aqui, nunca mais as ponho no sítio!

Olhe aqui as ferramentas: as piaças de amarrar os cornos, chambaris, tesouras de podar, faca da poda, serrote da poda, uma fouce para abrir buracos nos nenúfares para meter o anzol para a pesca, aqui para os molhos da erva, acolá a soga da vaca, aqui uma machada do Alentejo de cortiça que eu afiei e está uma categoria!

Estes são sacos de cereais de Trás-os-Montes. Eles não estão aqui por acaso. Este saco era do meu tio, tem aqui um “R”. Eram os sacos que nós usávamos para pôr batatas. Eu acho que isto faz parte. Este aqui também era um saco de Trás-os-Montes, está todo roto. Roto não, remendado. E eu prefiro isto com alguns defeitos do que um novo, porque isto tem uma história. Este saco é de linho puro. Vocês não imaginavam isto, pois não? Hoje é raro encontrar isto. Este é lindo. Comprei-o em Sendim.

Estou a tentar perceber o seu gosto, mas ainda não percebi... Tanto gosta de ferramentas, como de peças utilitárias, como de peças mais artísticas, como de figurado de barro.

Claro, gosto de tudo! Gosto aqui deste jugo, que era de uma vaca que nós tínhamos, foi um carpinteiro que fez isto tudo à mão. Isto para mim diz-me alguma coisa porque sei como é que isto se faz. Interessa-me a técnica, a sua utilização, a história que teve. Esta cabaça, por exemplo, sempre que íamos podar ou vindimar, ela ia com vinho. Chama-se a isso "cabaça avinhada". Este é o maço de bater nos pipos. Eu não tenho que ter um gosto próprio de arte popular!

É certo, mas normalmente o gosto direciona-se para um lado específico.

A minha direção será mais para as peças utilitárias do que para o figurado. Quer dizer, uma peça para mim tem que ter história.

Pois, mas depois chegamos aqui e tem uma mesa cheia de figurado! [risos]

Tenho! Porque eu conheço as pessoas que o fazem, gosto de falar com elas. Gosto de ver o que estão a fazer quando eu lá vou e gosto de me inspirar no figurado para as minhas artes. Inspiro-me muito nisto: introduzo alguns elementos na minha arte. Eu não comecei por acaso, tive que me inspirar nos outros.

Gosto de me inspirar no figurado para as minhas artes...

Quem é que o inspira?

Às vezes, as preferências... o nosso gosto confunde-se muitas vezes com o relacionamento que temos com as pessoas. Dou-me bem com o Sérgio Amaral, dou-me bem com a Júlia Côta, gosto do trabalho deles...

Mas o seu preferido é o Joaquim Siquenique?

É. É, por causa da pessoa em si e da simplicidade. Gosto do Siquenique, gostava da Ana Baraça. Os primeiros bonecos que comprei eram da Ana Baraça. E comprava-os nas feiras, a quem vendia os alguidares e louças utilitárias. Estes aqui comprava-os nas feiras, que nessa altura eu nunca ia a Barcelos comprar figurado. Gostava do figurado do Mistério Pai, só que o figurado que eu via nas lojas era muito caro.

O que eu mais aprecio no artesanato é isto: a arte do Joaquim Siquenique. Isto não se vê em lado nenhum. Tudo isto é dele, isto é uma homenagem ao Joaquim Siquenique. Veja esta simplicidade! Ele era pastor, isto praticamente é arte pastoril. Tem aqui um trolha, um burrito, uma casinha. Eu gosto muito destas peças. O homem andou na tropa – acho que foi na Figueira da Foz ou Coimbra – e conheceu Coimbra no tempo da tropa e nunca mais lá foi. Fez aqui a fonte dos amores com os estudantes a cantar, etc. Eu gosto disto porque acho que é de uma simplicidade...

O nosso gosto confunde-se com o relacionamento que temos com as pessoas...

É também muito curioso que não faça qualquer divisão entre a sua coleção e a arte que vai criando.

Tudo isto é uma miscelânea de decoração. Misturo a minha coleção, os meus quadros... E você vinha aqui a pensar que eu tinha uma coleção muito homogénea, mas não. [risos] Nem é coleção, nem são peças caras. São tudo peças baratas, outras dadas, outras trocadas. Cada uma tem a sua história. E gosto dessas histórias! Gosto de falar com as pessoas que estão ligadas à arte, gosto da arte... E isso dá-me acesso a muita coisa. Mas, ao mesmo tempo, eu sou muito cuidadoso em tudo, não falho em nada. Eu não gosto de improvisar. Tenho que me preparar. Os meus quadros podem parecer um improviso, mas não são. São uma tarimba de muitos anos, normalmente surgem de esboços que eu passo para a tela. É assim. De certo modo, também faço isso na minha vida. Já tive tantas vertentes, sempre com a mesma orientação, sempre com um fio condutor, que é o desenho. E ver as coisas sempre mais à frente, projetar coisas que não existem. Concebia as ferramentas, os moldes, imaginava peças... e as coisas funcionavam. Ainda hoje faço isso na fábrica. Podemos comprar as melhores máquinas do mundo, mas eu faço os acessórios para que aquilo funcione.

Fale-nos agora um pouco de si. Como foi o seu percurso profissional?

Quando acabei de estudar, fui convidado para a melhor fábrica da minha zona. Todos queriam ir para lá e poucos lá chegavam. O dono da fábrica era meu professor, dava-me algumas disciplinas, como tecnologia, orçamentos e contas de obras, desenho de máquinas, mecânica, etc. Ele dava o grosso do meu curso, que era de serralheiro mecânico. Era quase uma universidade naquele tempo. Aquilo era muito intensivo, os professores eram exigentes. Nós também queríamos vingar, havia muita concorrência entre nós. Eu era da zona de Águeda, que era uma zona muito industrializada, de maneira que havia uma certa competição entre nós. Para mim essa competição era um paraíso! E eu consegui ser um dos melhores. Mal acabei o curso, o professor convidou-me para ir trabalhar com ele na fábrica. Passado um ano já era o chefe de secção de desenho dessa fábrica, que era uma das secções mais importantes. Quando os industriais da zona souberam quem eu era e as competências que tinha, fui tendo várias solicitações. E nunca na minha vida pedi emprego a ninguém, foi-me sempre oferecido. Agora sou diretor de produção de uma fábrica há 25 anos.

Quando começou a pintar, começou em que registo?

Fazia coisas figurativas, copiava quadros de que gostava para ficar como decoração na casa. Aquele é um Cargaleiro. Tenho do Picasso, do Chichorro, do Gauguin. E depois tenho as minhas criações. Tenho aqui uma mistura de tudo. Ali uma cópia do Van Gogh. Aqui um pouco de arte popular. Mais uma peça do Siquenique. Tenho quadros do Filinto Viana...

Quando acha que desenvolveu o seu estilo próprio, o "estilo Idalécio"?

O meu estilo começou quando comecei a fazer retratos de pessoas e de animais. Fazia cópias pela fotografia, e nós aí metemos o nosso estilo. Copiamos o retrato e depois adaptamos.

Mas nos últimos tempos tem um estilo muito próprio, que é muito distinto de tudo o que fez.

Nos últimos tempos tenho feito criações todas ao contrário do que eu imaginava. É conforme calha.

Trabalha todos os dias?

Sim, oito horas por dia.

E quando pinta?

Todos os dias! Pinto e faço peças!

Quantas horas dorme por noite, para ser tão ativo?

Quatro. Às vezes até durmo cinco.
Irene [esposa de Idalécio]: Não sabe estar quieto!
Sim, sou muito ativo. Temos que aprender hoje para fazer amanhã, temos que aprender todos os dias. Isso é a minha filosofia.