Com 82 anos na altura desta entrevista, a vida de Carminda Rodrigues foi, como muitas outras do mundo rural, uma vida modesta, dedicada quase exclusivamente ao trabalho. Nascida na freguesia da Pousa, em Barcelos, na casa que ainda hoje habita, o seu tempo foi sendo ocupado entre o trabalho na fábrica e no campo, havendo pouco espaço para outras atividades. Praticamente analfabeta e pouco viajada (raramente sai da Pousa), as características da vida de Carminda parecem contradizer a riqueza do universo criativo que possui, e que se manifesta na criação de diversos objetos que foi produzindo ao longo da vida. Dos bordados originais às esculturas em madeira de inspiração religiosa, passando por bouquets de flores feitos a partir de plástico, as peças de Carminda apresentam uma simplicidade desarmante.
A visita que fizemos a sua casa, em abril de 2017, constituiu uma surpresa mútua: da parte de Carminda, por ver pessoas tão interessadas no seu trabalho; da nossa parte, por termos ficado absolutamente fascinados e surpreendidos quando nos deparámos com os objetos singelos que produz, e ainda mais quando conhecemos a história de vida da pessoa que está por trás deles.
Muito obrigado por nos receber em sua casa. Esta era a casa dos seus pais? Nasceu aqui?
Nasci.
E agora a casa é sua?
É minha, mas fui eu que fiz as obras nela, consoante pude.
Viveu sempre cá? Não casou?
Não casei… Não me faltaram moços! Mas eu não quis sair da minha casa para fora e pronto. E estou muito bem.
Vive sozinha agora?
Vivo, mas tenho aqui uma minha irmã com a casa pegada à minha.
Trabalhava onde?
Trabalhava no campo. E cheguei a trabalhar numa fábrica. Andei vinte anos a trabalhar numa fábrica e a trabalhar na lavoura, fazia tudo.
E na fábrica, o que fazia?
Eu já entrei com alguma idade, já não via bem para revistar peças. Então, passei para a limpeza, andava na limpeza. E ganhei sempre para ter a reforminha, que é o que me vale agora, que não posso trabalhar. Eu dantes fazia medeiros, eu fazia de tudo, lavrava com o arado, com as vacas… Mas agora não posso.
Então trabalhou 20 anos na fábrica e depois saiu?
Saí. Houve lá despedimento. Eles começaram a despedir as mais velhas para ir para a reforma, e ficaram as mais novas. Despediram muito pessoal. Agora essa fábrica acabou, era a Rainha do Cávado.
Como ia para a fábrica?
Cheguei a ir para lá a pé. Saía daqui às 6 horas, e às vezes ainda trabalhava antes de ir e depois que vinha. Chegou a dar três horas da madrugada e eu a trabalhar no campo. Era assim a minha vida! Levei sempre vida escrava. Tive medo de casar…
Ainda tinha que cuidar do marido!
Pois, e apanhar pancada e tudo!
Então, reformou-se com que idade?
Tinha 58 anos. Já estava perto da reforma e, depois, com o fundo de desemprego, arranjei a reforma. Não é grande, mas é o que me vale!
Foi à escola?
Eu sei pouco ler.
Mas chegou a ir à escola?
Não cheguei. Dantes não se usava ir para a escola. É assim a vida.
Naquela fotografia ali, quem é que está?
Os meus avós e as minhas tias.
E a Dona Carminda, tem alguma fotografia de quando era nova?
Sim, estão ali. Estou ali! 32 anos e 42 anos.
Ai que jeitosa! [risos]
Meu amigo, a gente modifica muito!
Aqueles são o seu pai e a sua mãe, lá em cima?
É.
Como é que começou a fazer estas peças?
Eu? Eu não aprendi em nenhures. Nem tenho ferramentas para fazer isto. Sabe Deus o que eu passei para fazer isto! Fouce, e machado, e assim… Eu não tenho ferramentas para fazer isto.
Mas quando é que começou?
Para aí há 10 anos. Isto leva muito tempo e dá muito trabalho. Ui, Meu Deus!
Qual foi a primeira peça que fez?
A primeira peça está ali. Não é tão bonita como esta [aponta para Cristo na parede]. Vocês vão já ver [leva-nos para outra divisão].
Eu tinha um Cristo, e roubaram-mo. E eu peguei numas tábuas velhas e fiz este. Mas ele não ficou bonito, era muito magrinho. E eu peguei, mandei botar um castanheiro abaixo e fiz aquele que está na sala. E fiz esta rosa. Depois, foi a Nossa Senhora das Dores e tudo a seguir.
Como é que transporta estes pedaços de madeira tão grandes?
Trouxe com as vacas. Antes tinha vacas e agora não tenho. É madeira de castanho.
E agora, ainda trabalha?
Agora já tenho 83 anos… Já vou fazer 83 para julho. Agora não estou para isso. Ah, não faltou quem quisesse que eu fizesse para fora. Ui, encomendas que Deus me livre! Tudo queria, tudo queria!… Ah, não posso! Eu fazia isto e trabalhava na terra, na lavoura. Chegava às três horas da madrugada, e eu aqui em baixo numa loja que tenho a trabalhar naquele Cristo. E depois trouxe-o para cima com muito gosto. Tenho gosto nas coisas. E bordados que eu fazia, grandes, quando era nova!
Aprendeu a bordar sozinha ou com a sua mãe?
Aprendi sozinha, pela minha cabeça.
Quando começou a fazer os bordados?
Já foi há muito tempo, quando era nova. E tenho mais toalhas bordadas, só que estão guardadas.
Já não faz mais bordados?
Já não. Tenho muitos! Fiz este, este, este [vai apontando].
Estas ferramentas, são estas as ferramentas que usa? Está a fazer uma pecinha!
É! [risos]. Mas não é nada, comecei e não acabei.
E esta?
Esta era o galo de Barcelos, mas partiu aqui em cima…
Porque é que já não quer fazer mais esculturas?
Oh, eu agora já não posso andar com isso.
E as esculturas do jardim?
Não fui que as fiz. Comprei e depois pintei. Mas a tinta já está a sair, já foram pintadas há muito tempo.
Lembra-se da primeira pessoa que veio cá para ver as suas peças?
Não sei... Veio muita gente!
Como é que as pessoas descobriram que tinha estas peças aqui?
Deitaram ao jornal! Foi assim: eu fiz isto em segredo. Ninguém sabia. Mas depois vieram aqui assim umas minhas colegas, e viram. Disseram a um jornalista, e o jornalista botou no jornal! E depois tudo soube. Em Barcelos e tudo! E então começaram a ver isto. Veio muita gente, de Braga e tudo!
Em que jornais é que já saiu?
[Vai buscar os jornais para nos mostrar.] Esta Senhora de Fátima roubaram-ma. Tinha-a lá em baixo e pronto. Por isso é que eu comecei a trazer cá para cima.
Quiseram fazer exposições consigo?
Quiseram, mas eu não fiz nenhuma. Eu andar com isto, oh Meu Deus! Eu tenho gosto em ter as coisas. Ainda no outro dia veio aqui uma professora e eu mostrei. Eu não me importo!
Porque não quer vender?
Não quero, eu gosto de ter as coisas. Gosto de ter as coisas.
Estas figuras, quem são?
É São Judas Tadeu, é a Rainha Santa Isabel, é o Rei D. Diniz, que é o marido da Santa Isabel, é São João a batizar Cristo, Nossa Senhora do Sameiro, Nossa Senhora das Dores e Santa Cristina.
E aquela pomba?
É o Espírito Santo. São João Baptista está a batizar Cristo.
Vai à missa?
Então não hei-de ir à missa?! Nosso Senhor e Nossa Senhora é tudo! Nós sem eles não valemos nenhum.
Onde é que vai à missa?
Aqui na Igreja da Pousa.
Então é lá na Igreja que vê estas imagens?
[Acena afirmativamente.] Santa Cristina é a padroeira da Pousa.
Nunca pensou oferecer as esculturas a uma igreja?
Não, eu gosto de tê-las aqui.
De todos, qual é que gosta mais?
Gosto de todos! [risos]
Os brincos que as figuras têm, eram seus?
Comprei. Mas não são de ouro!
Quanto tempo demorava a fazer cada peça?
Demorava muito. Isto não é aplainado nem nada… Eu não tenho ferramentas para fazer estas coisas. Fazia um bocado em cada dia. Às vezes até estava todo o dia.
Não pensa mesmo em fazer mais nenhuma peça?
O que fiz, fiz, já está feito. Já tenho coisas que chegue.
E o que gostava que acontecesse aos seus santinhos no futuro?
Vamos lá ver… não sei ainda. Ir até para um Museu ou assim.
As minhas sobrinhas, se elas quiserem, ficam elas com eles. Se não quiserem… Mas elas gostam deles, gostam muito.
NO CAMPO
Como é que ocupa os seus dias?
Eu ainda agora andei a sachar batatas. Só tem erva, minha Nossa Senhora do Sameiro!
Este campo é todo seu?
É.
E cuida dele sozinha?
É, que remédio tenho eu.
O que é que planta mais sem ser batatas?
Milho!
Qual é a altura do milho?
É agora. Em abril, lavra-se.
E as batatas, vende?
Vendo pouco, o pedaço também é pequeno. É pequeno mas dá muito que fazer, Meu Deus! É muito ruim de sachar! É preciso a gente sacudir esta erva toda…
Não tem ninguém a ajudá-la?
Não. Mas o trator agora faz tudo.
Tem um trator?
Não é meu. Pago!
Tem que regar todos os dias?
Tenho, tenho que regar.
Então a senhora trabalhava aqui durante o dia e fazia as esculturas à noite?
Era.
Teve uma vida difícil.
Sim. Sem trabalho não há nada.