António Ramalho, nascido em Barcelos em 1969, é filho de Júlia Ramalho e bisneto de Rosa Ramalho, tendo começado a brincar com o barro ainda em criança. Nascido no seio de uma das mais conhecidas famílias que produzem figurado de barro em Portugal, não é de espantar que a herança da bisavó e da mãe seja uma presença constante nas suas figuras, quer pelo recurso a elementos e motivos que elas já utilizavam, quer pela vontade consciente de se afastar dessa mesma herança, procurando desenvolver uma linha singular. É em 2004 que António Ramalho começa a dedicar-se em exclusivo à produção de figurado, dividindo o seu trabalho entre a ajuda na produção das peças da mãe e na conceção e execução das suas próprias peças. As experimentações com vidrados em tons de verde e o recurso ao universo fantástico, povoado por criaturas bizarras, são algumas das características do seu trabalho, que o próprio não considera já como arte popular.
Esta entrevista é o resultado resumido de duas longas conversas: uma, em dezembro de 2016, aquando da sua presença numa feira no Porto e outra, em abril de 2017, na oficina onde trabalha, situada na casa da mãe. Esta última conversa foi feita enquanto António e Júlia trabalhavam, lado a lado, nas suas respetivas peças, e Júlia Ramalho, faladora por natureza, não se coibia de dar a sua opinião sempre que achava pertinente. Ficamos então a conhecer não só as ideias e o trabalho de António Ramalho, mas também a forma como ambos, António e Júlia, encaram o estado atual do figurado de Barcelos e o legado da família Ramalho.
Lembra-se da primeira vez em que mexeu no barro? Lembra-se da primeira peça?
Da primeira peça não me lembro, mas lembro-me de mexer no barro. Tenho uma situação em que estava a trabalhar ao lado da minha bisavó, e tinha a mania de fazer uns cavalinhos e umas coisas assim. E houve um senhor espanhol que ficou com essa peça, em barro.
E que idade tinha?
Ora bem, ela faleceu em 1977, isso seria em 76, 75. Teria 6, 7 anos.
Era mesmo muito pequeno então.
Sim. Às vezes fazíamos brinquedos, íamos brincar com os brinquedos em barro. Fazíamos estradas no cimento e depois fazíamos uns camiõezinhos e andávamos ali a brincar. Até partir.
Quando decidiu dedicar-se exclusivamente ao barro? Chegou a ter outros trabalhos antes?
É assim, andei a estudar… e mesmo enquanto andava a estudar, ajudei a minha mãe. Quando decidi terminar os estudos é que me dediquei a tempo inteiro.
Que idade tinha?
Dezasseis.
E a partir daí é que disse: vou fazer só isto?
Sim. Depois há três períodos… há dois períodos relativamente curtos em que emigrei. A primeira vez foi em França. Seis meses. Em… deixe ver se consigo situar-me. Não, a primeira vez foi em Inglaterra, em 89, entre Agosto e Dezembro. Em 1990 estive em França, entre Maio e Outubro.
Porque saiu? O figurado não dava o suficiente?
Não, essa questão de sair foi mais de aventura [risos].
Quando começou a produzir as suas peças, o que mais o influenciou?
Primeiro comecei a ajudar, não aprendi logo. Os meus irmãos gozavam comigo porque se fosse preciso eu estava uma tarde toda para fazer uma peça. “Ei, só fez uma peça!”. Entretanto comecei a ganhar experiência, e uma pessoa conforme vai aprendendo vai produzindo mais. É cada vez mais perfeito, tem outras ideias… Mas no início nem assinava as minhas peças, o que eu criava levava a assinatura da minha mãe.
Que tipo de peças eram? De onde é que vinham?
As primeiras coisas que eu fazia eram uns animaizinhos pequeninos, uns vikings – na altura que dava o “Vickie”. [risos] Essas coisas todas. Os desenhos animados acabam por ter sempre um bocado de influência. E então eu brincava a fazer assim umas coisas.
Depois quando começou a ter uma voz mais própria, alguma coisa o influenciou? Não sei se faz alguma espécie de pesquisa, livros ou…
Não, os livros nem tanto. O que eu faço é: pego numa folha em branco e faço uns riscos. E às vezes a partir daí dá-me umas ideias. Penso: vou fazer isto. E para não me esquecer faço uns traços. E mesmo que não faça logo, guardo o desenho para não me esquecer.
Como lida com as influências do trabalho de Júlia e Rosa Ramalho na sua obra?
António Ramalho – Tento que não se percam as influências, mas também inovar um bocadinho, procurando fazer coisas diferentes. Mas a base é, sem dúvida, o que vem detrás, tanto de uma como de outra [mãe e bisavó].
Júlia Ramalho – Eu vou-me meter na conversa um bocadinho. Por exemplo, se ele for à FIL [Feira Internacional de Artesanato, em Lisboa] devia levar o Santo António, o São Pedro e o São João, como a minha avó fazia. A resposta que tem para os clientes é a que eu já dei: “Eu não quero perder a tradição da minha avó, mas vou criando coisas novas”. A resposta não está bem dita? Ele diz que não quer fazer o que a avó já fez. (…) Mas ele não vai viver só de bichos! Se ele fizer santos como eu faço, ele pode dizer: “Isto é a tradição da minha mãe e da minha avó”. Eu continuo a fazer as cabras, os carrôchos… A mim também já me perguntaram: “Porque estás a copiar a tua avó?”. E eu disse: “Eu não estou a copiar a minha avó, estou a manter a tradição da minha avó”.
António Ramalho – Foi o que eu disse.
"Pedaços d' Avó", criação de António Ramalho, combina três peças icónicas da sua bisavó, Rosa Ramalho: o Diabo Cabeçudo, o Cristo e a Cabra.
Quanto ao processo de criação, sabe o que vai criar à partida ou a peça vai-se construindo?
Às vezes uma pessoa tem uma ideia, mas quando termina a peça não é nada do que imaginamos.
Qual a sua peça preferida?
A minha preferida é a “Pedaços d’Avó”. E o “Bicéfalo”. No geral gosto de todas, não há nenhuma que não goste.
E quanto aos vidrados?
A cor principal é o castanho mel.
Há alguma razão para utilizar o vidrado verde nas suas peças?
A minha bisavó já utilizava o castanho, o verde e o amarelo. O vidrado castanho é a marca da minha mãe, e depois ninguém distinguia as nossas peças.
"Bicéfalo" com vidrado verde
Queria falar agora um bocadinho das técnicas e dos materiais que utilizam. De onde vem o barro que usam?
Uma parte vem de Águeda, o preto, e o branco vem de Viana, de Alvarães.
São vocês que fazem a mistura?
Sim, somos nós.
Como fazem? Quais as quantidades?
Depende. Para aparelhar – chamamos "aparelhar" a fazer estas coisinhas mais pequeninas – é mais preto e menos branco. Por exemplo, uma pá de preto e meia de branco.
Parece um trabalho fisicamente exigente. Têm alguma máquina?
JR – Sim. Agora é ele que faz mas antes era eu que fazia. Não sei se era melhor avançar com os bois ou com a máquina.
AR – Sim, temos uma máquina.
A nível do seu quotidiano, faz um horário igual todos os dias?
Quando há mais que fazer, às vezes até trabalhamos mais do que o que devemos. Mas quem trabalha no artesanato nunca tem um horário fixo. Há dias em que não há vontade, não há inspiração…
As épocas do ano influenciam o trabalho?
JR – Trabalha-se muito antes do Natal, porque é a época do ano em que se vende mais.
Das outras pessoas que produzem figurado, há alguém de quem goste especialmente?
AR – Gosto muito do Esteves que faz caricaturas e que tem ideias originais. A cabeça dele não anda atrás de ideias de ninguém. Claro que há temas que foram feitos e mais que feitos, mas ele é muito original. Gosto do João Lourenço. É muito original, também. Ele domina várias áreas: domina a técnica do vidrado, domina bem a roda… Ele domina muita coisa, e pode explorar muito.
Mais alguém que se destaque?
AR – Quanto às pessoas que pintam… eu acho tudo muito idêntico, muito parecido uns aos outros.
JR – Copiam…
AR – Não é copiam. Cada um faz à sua maneira mas fica muito parecido uns com os outros.
Qual é a sua opinião sobre a certificação do Figurado de Barcelos?
Certificação!? Eu acho isso uma grande treta… Todos os anos estão a certificar uma coisa que foi certificada no ano anterior. Todos os anos há uma renovação de papelada… Perguntam-nos se mudamos o processo de fabrico, se continua tudo igual, há muita repetição. No artesanato o método de fabrico é quase sempre o mesmo. Depois há pessoas aqui em Barcelos que não são certificadas pelo simples facto do material não ser aqui da zona. Nós temos uma parte do barro que não é aqui da zona…
Eles sabem?
Sabem. É assim, a certificação é sempre importante… é útil. Mas todos os anos eles vêm com as mesmas perguntas. Podiam fazer uma coisa que durasse mais tempo.
E a nível dos motivos?
AR – Mesmo os motivos, eles não certificam tudo. Se não for tradicional ou popular eles já não certificam.
JR – As pias não são certificadas. Eles não percebem nada, eles sabem lá de onde é que vem o barro!
Com as suas peças já houve problemas?
AR – Não, nunca houve, foram sempre certificadas.
Chegou a aprender alguma coisa com a sua bisavó, Rosa Ramalho?
Não. Quando estava ao lado dela era a brincar, a estragar peças [risos].
Quando ela faleceu, que idade é que tinha o António?
Oito.
Qual a sua opinião sobre ela?
AR – Ninguém lhe podia pisar os calos. Nós andávamos logo de lado.
JR – E ela não tinha razão?
AR – Tinha, porque nós pegávamos com ela. [risos] Éramos sempre vinte ou trinta putos atrás dela. Éramos nós que éramos cinco, os meus primos que eram outros cinco. São logo dez. Mais uns quantos vizinhos…
A última vez que falámos tinha dito que não gostava muito do termo "arte popular" aplicado à sua arte. Pode falar mais um pouco disso?
AR – Eu acho que as minhas coisas já não são tanto arte popular ou tradicional como isso… Pode haver um tema ou outro – se fizer um santo, é arte popular. Mas se for para a parte da bicharada, já não tem muito a ver com arte popular. E se calhar até tem… Mas a bicharada que se fazia antigamente o que seria? Os lagartos, as pombinhas, os pombais…
JR – As pombas da Catrina. E fazia-se também o “cão d’auga”.
AR – Sabe o que é o Cão d’água? É um cãozito de depois levava umas escamas no pescoço.
Ah, já sei qual é. Quer deixar mais algum comentário sobre o seu trabalho?
AR – O meu trabalho é assim: não queria fazer santinhos e tenho que fazer santinhos [risos].
JR – Vive só do diabo… A minha avó viveu muito tempo só do diabo! Ela fazia os diabos cabeçudos e vendia-os a cinco coroas cada um! Ela levava-os daqui por pintar – normalmente há uma hora morta nas feiras de Matosinhos, à tarde – e a minha avó punha-se a pintar os tais cabeçudos.
AR – É assim, o popular e o tradicional devemos fazer de vez em quando. Mas eu gosto mais de fazer a minha linha, que é aquela que parte do imaginário… Coisas que ninguém faz.
Então se não a considera "arte popular", como considera a sua arte?
É como diz o Zé Carlos [José Carlos Soares, proprietário da galeria Cruzes Canhoto], é arte bruta, se calhar. Eu gosto de ir um bocado ao primitivo… Às vezes uma pessoa dá muito detalhe a uma coisa e não vale a pena. Se repararem nas peças da minha bisavó, são muito despidas. Mas tem tudo, a peça tem tudo. Tem a expressão, tem o movimento… tem lá tudo.
VISITA À SALA DAS PEÇAS EM EXPOSIÇÃO
Este pequeno Museu que vocês têm cá em casa… Chamam a isto um Museu?
AR – Não [risos].
JR – Há peças que não sabia onde as pôr e fui acumulando ali.
Tem várias peças da Rosa Ramalho, não tem?
JR – Algumas. Muitas, eu tenho-as escondidas.
Como escolhem as peças que vão para ali?
JR – São as peças que não queremos vender.
AR – Algumas são as primeiras peças que fizemos.
Este espaço existe há quanto tempo?
Este espaço existe desde 1992, salvo erro. Este espaço existia dentro da casa. As pessoas entravam ali pela porta da frente e viam. Era uma divisão muito pequenina. E em 92 construiu-se isto aqui e puseram-se aqui estas peças.
Pertencem todas à vossa coleção?
Não, algumas são para venda.
Quanto ao legado da família Ramalho, o que gostariam que acontecesse com estas peças?
Não sei, a minha mãe diz que não dá nada para o museu. Eu, por mim, jamais gostava que isto se separasse tudo. Somos cinco irmãos e, se isto se separar tudo, perde-se completamente o sentido. Eu gostava que isto ficasse tudo junto, sendo de um museu ou não.