Alexandra Ribeiro Simões é farmacêutica de profissão, mas manifestou desde cedo uma clara propensão para o colecionismo. De entre as várias coleções que foi organizando ao longo da vida, destaca-se a que tem dedicado à arte popular, que se vai aos poucos estendendo por todas as divisões da sua casa de Lisboa. O seu interesse pela arte popular não se reduz, porém, à prática colecionista: tem procurado conhecer e divulgar um conjunto de artistas e artesãos, dinamizando, para isso, a página do facebook Olaria e figurado português. Recentemente, emprestou algumas das suas peças de José Maria Rodrigues ao Museu de Olaria de Barcelos, onde podem ser vistas até meados de junho de 2022.
Esta entrevista foi realizada na casa de Alexandra Ribeiro Simões em Março de 2022, tendo-se focado essencialmente na construção da sua coleção de arte popular. O facto de já nos conhecermos há algum tempo, a par da informalidade que Alexandra faz questão de estabelecer nas suas interações sociais, justificam nesta entrevista o uso da segunda pessoa do singular.
Fala-nos um bocadinho do teu percurso biográfico. De onde vens e o que fazes?
Nasci em Viseu em 1964. Estudei em Viseu e em 1982 vim para Lisboa estudar farmácia, algo tradicional dentro da família. Os meus pais e três dos meus cinco irmãos têm o curso de farmácia, e atualmente eu e o meu irmão gémeo zelamos pela farmácia da nossa mãe. A intenção foi nunca voltar para Viseu, daí ter escolhido vir estudar para Lisboa e movimentar-me para ficar por aqui, ao arranjar um bom sítio de estágio. Depois do estágio, consegui ficar a trabalhar no setor das farmácias, onde ainda estou.
Quando foi a primeira vez que te lembras de contactar com arte popular?
Contactar foi desde sempre, porque já havia algum hábito de ir a feiras, sendo que ir a feiras era um acontecimento! Em Viseu havia uma feira anual, a feira de São Mateus, e lembro-me de a frequentar, assim como a do Estoril. Fui também várias vezes à feira de Mafra…Lembro-me desde cedo de ter muitos púcaros, brinquedos, mealheiros, e partia tudo! [risos]
Então os teus primeiros objetos de artesanato eram para brincar.
Sim. Era este lado lúdico da peça de artesanato, porque não havia muitas alternativas de brinquedos. Era normal teres aquelas peças de barro em miniatura, o vasilhame, a cafeteira, tudo em barro. E nenhum desses objetos persistiu.
E como passaste para uma coisa mais séria, até te tornares colecionadora?
Por absurdo que pareça, acho que há aqui um lado sistemático de achar piada à coleção. Sempre fiz coleções de tudo e mais alguma coisa: selos, moedas, cromos… A coleção mais bizarra que tive, que me roubaram, era de invólucros de preservativos, que desapareceu da gaveta do meu quarto… Depois vim a saber o que aconteceu pela minha irmã, que tem uma diferença de onze anos, que me disse: “que coleção é que andas a fazer que a mãe teve que a fazer desaparecer?” [risos]. Tendo crescido num meio farmacêutico, já que o meu pai e a minha mãe tinham cada um a sua farmácia, lembro-me também de guardar os rótulos de farmácia e as caixas de cartão de medicamentos… Já havia aqui uma característica clara de alguém que coleciona, mas que nunca foi assumida. Aliás, mesmo a coleção de arte popular, só muito mais tarde foi assumida. Comecei a comprar algumas peças porque achava piada, mas não tinha esse intuito de coleção. Só quando chega a determinado número é que dizes para ti: “ok, isto já é uma loucura”. [risos]
Quando foi esse momento?
Talvez no ano 2000. Foi quando me apercebi que se calhar tinha que adaptar um bocadinho a casa, porque os bonecos que ficavam na estante, ao lado dos livros, tinham tendência para se partirem, portanto era preciso ter algum cuidado. Quando vais juntando um conjunto de coisas, há um momento em que as queres organizar, em que achas que aquilo deve estar direito.
A organização desta coleção de artesanato obedece a alguma lógica?
A lógica é mais recente… Quando começas a juntar, fazes sem critério. Mas depois alguém entra cá em casa e pergunta: “Que coisa é esta?! Isto nem sequer lógica tem!” [risos] E eu ficava zangada porque para mim tinha lógica. Por exemplo, aí nessa prateleira, estão galinhas e estão mulheres. E essa lógica era mal-aceite, porque as pessoas veem uma peça de Mafra, uma da Maria Sineta e uma do Mistério e perguntam: “qual é o critério?!” [risos]. Aqui é o local privilegiado de Barcelos, que é aquilo que eu gosto. Aqui está a família Côta: consegues ver a evolução, que é de serem parecidos mas todos diferentes. Tinha também a preocupação de não ter as peças em caixotes.
Tentas então mostrar todas as peças que tens.
Mostrar não, ver. Não há aqui a perspetiva do outro, isto é de uso pessoal.
Começaste a contactar com outros colecionadores e entusiastas? É que eu fui percebendo, pelas entrevistas que tenho feito, que muitas das pessoas que colecionam arte popular e artesanato se conhecem entre si e trocam impressões sobre as peças e os artesãos.
Nem por isso, acho que isso é mais recente e tem a ver com as redes sociais. Eu não fazia ideia nenhuma das pessoas que havia que também colecionavam… até porque isto tem algo de secretismo, por ser considerado uma arte menor, isto é visto como um arte menor. Hoje nem tanto, mas antes era comum perguntarem: “porque é que fazes coleção de artesanato e não de pintura?”
Continuas a sentir que é uma arte menor? Como vês as mudanças na perceção da arte popular e do artesanato?
Eu acho que agora virou moda, o que também é insuportável! [risos]. Acho que se começasse agora nunca faria esta coleção, porque não gosto das massas. Coleção de rótulos de farmácia ainda não conheço ninguém que faz, portanto será uma coleção maior! [risos].
Mas porque dizes que está na moda agora?
Há um escultor, que é o Ricardo Casimiro, que diz que pior que o artesanato é o “atrasanato”, que é onde andamos todos. Tu hoje de facto tens imensos colecionadores de "atrasanato" e da quinquilharia.
A que tipo de peças esse termo se refere?
São as peças do presépio para dar com os cortinados, é a miniatura do santo, este lado de escolher as peças para caber nas casas… Acho que temos que ter a noção do espaço, mas também tem que haver algum sentido estético das coisas. Se só fazem coleções de miniaturas porque não têm espaço, então que escolham as boas. E que artesanato não seja só um objeto que seja mais ou menos feito à mão... O olhar é uma coisa que se vai desenvolvendo e nós de facto vamos sendo cada vez mais exigentes. Hoje considero que é muito difícil encontrar uma peça que queira ver aqui em casa, apesar de não parecer! [risos]
Como é que justificas isso? Achas que está a haver uma perda de qualidade nas peças?
Acho que como qualquer outra coisa isto começou a ser mais um negócio… Tens um lado bom e o reverso da medalha. Por exemplo: Barcelos incentivou muito os artesãos que existem, mas talvez quarenta por cento dos que fazem hoje não existiriam se não tivessem sido incentivados, e também alguns deles não fariam grande falta.
Como encontras as peças que compras? Fazes pesquisas prévias ou só depois de encontrares um artesão que gostes?
É importante ir às feiras e perceber o que existe… nem sempre os que vão às feiras são os melhores, mas aí vais descobrindo outros da mesma região. Outra forma de fazer uma pesquisa, que acho dá algum gozo, são peças antigas caídas dos colecionadores, que vêm dos recheios das casas. Eu tenho algumas peças que foram adquiridas dessa forma, é um tesourinho conseguir descobrir de quem são. Gostas e andas em busca, sabes que um dia vais descobrir de quem são, e isto é o espírito do colecionador. Porque terá sido um artesão anónimo? Quando vou a casa dos artesãos, normalmente vou ver as prateleiras mais escondidas e é aí que estão as peças melhores. A Júlia Ramalho dizia-me "mas porque é que olha sempre para essas peças? Essas ficaram mal". Não faz mal. Tenho peças cá em casa que gosto muito, como aquela galinha branca, que é daquelas que estava “de lado”. E quando vou aos Mistério tento chegar às peças onde há pó. É apanhar de facto o que é diferente, por exemplo uma peça em cru.
Interessa-te também perceber um pouco da biografia dos artesãos, certo?
Sim. Interessa-me perceber as motivações, porque fazem o que fazem… Tenho às vezes um bocadinho a sensação de que poderíamos pôr os artesãos a voar, se tivessem sido ajudados. Fala-se sempre muito do caso da Rosa Ramalho, que de facto foi incentivada a perseguir o seu lado criativo. No artesanato, por um lado as pessoas têm muito pouca formação, mas por outro, quando têm, parecem não otimizar muito. Isto é algo que me divide muito. Há certos artesãos que procuram fazer obras perfeitas, dizem que já não há motivo para não haver qualidade. Mas por vezes acaba por ficar muito pouco interessante. É muito curioso apanhar o percurso de um artesão e perceber como é a sua abertura de espírito para o mundo… Tens agora artesãos que andam a passear pelo mundo e outros que não saem da sua redoma. E acho que consegues olhar para uma peça e perceber qual foi a viagem que cada um fez. Nós encontramos isso no Zé Maria de Ribolhos, um artista de quem gosto muito. Ele foi “descoberto” muito tarde, mas fartou-se de fazer feiras, andou a viajar pelo país e a sua obra refletiu isso. Assim como para um colecionador certas peças deixam de fazer sentido, para um artista também, tem a ver com a evolução do fazer e do criar.
Como descreves a tua coleção?
Isso é um pouco difícil… mas eu diria que é uma coleção bastante razoável! [risos] Daquilo que eu conheço de alguns colecionadores, isto é um bocadinho topo de gama, apesar de não gostar muito de o dizer. Acho também interessante o facto desta coleção ser fruto da interseção de outros cinco colecionadores. O José Matos, onde comprei muitas das peças do Zé Maria, mas também da Maria Sineta. Há uma série de peças que vêm de um grande colecionador, que era o dono da editora Campo das Letras, e eu acabei por ficar com algumas, como as do mestre Batata ou algumas peças de barro preto. E estão também aqui umas peças de um senhor que tem uma agência de viagens e que decidiu desfazer-se da sua coleção porque as filhas disseram que não a queriam! Algumas das peças mais antigas da Júlia Côta, do Tuta e da Ti Guilhermina vêm daí. E depois há o Carlos Barroco, uma das pessoas mais importantes na divulgação da arte popular em Portugal. Um dos assuntos que me interessa muito é o lado do colecionismo e dos colecionadores. Tenho procurado livros sobre isso, sobre o que move as pessoas a colecionar, quais os critérios que desenvolvem.
Fala-me então um bocadinho do teu contacto com o Carlos Barroco.
Há um lado engraçado nessa história: ele tinha uma galeria de arte, a Novo Século, e eu sempre tive um bocadinho a noção de que a arte é uma coisa mesmo muito cara, portanto nem sequer entrava na galeria, apesar de passar lá em frente muitas vezes. Houve um dos dias em que passei lá e apercebi-me que havia uma série de bonecos na montra e aquilo chamou-me muito a atenção. Mais tarde, houve uma altura em que fui a Cabo Verde e comprei uns bonecos muito engraçados, de um tal Joy Soares, e fui ter com ele para me ajudar a identificar. Cumprimentávamo-nos quando nos víamos na rua e ele dizia sempre: “apareça na galeria!”. Eu nem sequer tinha associado que uma série de textos que estão em livros de artesanato eram escritos por ele, só mais tarde vim a associar. Depois houve um dia qualquer, acho que em 2016, em que a galeria estava cheia de bonecos de artesanato e aquilo pôs-me completamente maluca! [risos] E comecei a passar diariamente na galeria, que estava sempre fechada. Até que comecei a mudar a hora de ir e um dia encontro a Nádia Baggioli, a companheira do Carlos, que me disse que ele tinha falecido – e eu de facto tinha deixado de o ver na rua – e começou a haver alguma aproximação entre nós. Eu organizo aqui em casa uns jantares temáticos e comecei a desafiar a Nádia a juntar-se. Quando ela veio cá a casa ficou absolutamente fascinada, disse-me que nunca tinha visto nada semelhante! Nunca houve uma conversa explícita sobre a coleção no início, mas houve uma altura em que ela disse que teria que se desfazer da coleção do marido. Eu acho que nunca a perdi de vista, digamos assim [risos]. E comecei a ficar com a coleção. Percebi que havia um conjunto de objetos aos quais ela estava muito agarrada e alguns desses não os consegui obter [risos]. E foi curioso entender o que era um pesquisador de arte popular, como é que ele encontrava os artesãos sem haver praticamente nada em Portugal sobre eles, estamos a falar dos anos 1980-1990. As peças foram chegando por áreas, as primeiras foram do Zé Maria. O mesmo aconteceu quando o José Matos faleceu e eu pensava muitas vezes “onde é que estão as peças dele?” [risos]. Depois acabei por ficar também com algumas delas, porque a filha foi colocando à venda. A coleção que hoje tenho do Zé Maria reúne estes dois universos diferentes, um mais comercial, do José Matos, e outro de uma pessoa que percebe a essência da obra, como era o caso do Carlos Barroco. Acho que quando começamos a apreciar uma peça do Zé Maria, acordamos para alguma coisa. É o início de tudo. É uma aprendizagem, não é algo fácil de entrar. Acho piada sentires que é algo primordial, poderia ser de outro século.
Tens algum inventário da coleção?
Não. Agora tenho do Zé Maria, do qual tenho cerca de 70 ou 80 peças, acho eu, nem sei bem. Acho que esta ideia de inventariar é quase como um fechar de um círculo. Quase não tenho direito, digamos, de ter uma coleção destas e não ter um inventário! Quanto mais não seja, para depois a Leonor [filha da Alexandra] poder partir a coleção por zonas [risos].
O que achas dos termos arte popular e artesanato? Faz sentido para ti separar estas áreas?
Tenho alguma dificuldade em inserir certas coisas na área do artesanato, como por exemplo o mundo dos bordados. São mundos muito diferentes. Mas quando falo da minha coleção, gosto muito mais da terminologia arte popular do que artesanato.
Quais os teus artistas preferidos?
Os Mistério e o António Ramalho, certamente. O Zé Maria. Hoje há uma pessoa que eu acho que tem uma criatividade maravilhosa, que é o Sérgio Amaral. Ele de facto tem noção das raízes e de onde vem, mas consegue criar coisas maravilhosas, consegues olhar para o trabalho dele e vês os saltos, a evolução. Também gosto muito do Ricardo Casimiro. Acho que olhando para a obra de todos eles podemos dizer que não faz sentido isto ser considerado uma arte menor.
E estas peças, de quem são?
São minhas! Foram feitas por mim, são as minhas experiências com o barro no atelier do Sérgio Amaral. Há esta peça que eu fiz o corpo e pedi à Reinata Sadimba para fazer a cara, quando esteve numa residência artística na Bajouca. Ela não achou piada nenhuma, mas lá fez! [risos]. Tenho também uma homenagem ao Mistério e outra à Rosa Ramalho.