João Lourenço ocupa uma posição singular no contexto da cerâmica portuguesa: tem sido um dos principais oleiros a fazer a ponte entre uma geração mais velha, cuja aprendizagem se realizava por via familiar e em contexto de oficina, e uma geração mais recente, saída dos cursos de artes, que tem desenvolvido um interesse significativo pela área da cerâmica. Tendo crescido numa olaria, seguindo a tradição familiar do seu pai e avô, a sua curiosidade levou-o a procurar ampliar os seus conhecimentos, realizando cursos em Barcelona ou na Galiza. Domina, por isso, um conjunto de técnicas menos comuns num oleiro de Barcelos, como o raku ou a decoração com sais, que o têm tornado num ceramista crescentemente requisitado para trabalhar com designers.
Visitámos a sua oficina em Setembro de 2021, onde falámos sobretudo das modificações que têm ocorrido no campo da olaria em Portugal.
Que espaço fantástico! Todas estas peças são feitas por si?
Sim, todas. Uma parte é o meu trabalho mais pessoal: tenho peças de raku, algumas decoradas com sais metálicos, que procuro vender diretamente ao público nas poucas vezes que saio, como na feira de artesanato de Barcelos. Mas também recebo aqui alguns grupos que vêm da Galiza e que me compram diretamente.
Como chegou à olaria?
Esta profissão até agora, à minha geração, tem tido algumas alterações, porque já não se aprende em olarias, como foi em tempos. A minha escola ainda foi em contexto de olaria. Este espaço era do meu avô, depois passou para o meu pai e eu aprendi com eles. Eu já aos dez ou doze anos brincava com o barro. É preciso muito tempo para se aprender alguma coisa nesta área, há pessoas que até gostavam mas perdem a vontade, não têm pachorra para aprender. Depois trabalhei também uns tempos com o Álvaro Rocha, que era artista plástico, ele tem uns murais em cerâmica em Viana do Castelo. Depois fiz o serviço militar e, a partir daí, estive sempre a trabalhar com o meu pai, e depois com o meu irmão, que também era oleiro.
Apesar de ter aprendido com a sua família, quis fazer outras formações.
Sim, eu notava que tinha muitas carências. Com os anos fui fazendo algumas formações, fui a Barcelona fazer a escola cerâmica La Bisbal, depois fiz uns cursos de verão que se realizavam em Pontevedra, onde vinham artistas de todo o mundo, fiz alguns cursos de verão no CENCAL [Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica], nas Caldas da Rainha. Eu estive em vários lados e posso dizer com propriedade que em lado nenhum se trabalha melhor em olaria do que em Barcelos, garantidamente!
Em que sentido?
Quando digo na olaria, digo no trabalho da roda. Temos muito bons oleiros na roda, exímios. Mas temos muitas carências nos conhecimentos dos barros, das pastas, de como funcionam as cozeduras, os acabamentos vidrados... Isto é algo que vem de trás: os oleiros nesta região quase só estavam na roda, as mulheres é que preparavam o barro. E depois havia outra pessoa – o pai ou alguém mais velho – que tratava da cozedura. As pessoas passavam muitos anos só na roda, daí tornarem-se exímios na execução. Depois, eram contratados para trabalhar nas fábricas, sendo que fábricas aqui no nosso meio são unidades pequenas de oito, dez ou doze pessoas, mas já era uma produção mais em série. E as pessoas passavam esses anos só a trabalhar na roda. Por comparação, noutros centros, eram os próprios oleiros que iam procurar o barro, faziam as peças, acabavam-nas, coziam-nas e reuniam, assim, vários conhecimentos mais abrangentes. Esta geração mais nova, entre os trinta e os cinquenta, fora do nosso meio – estou a falar por exemplo das pessoas das Caldas da Rainha e da zona de Lisboa – beneficiaram da escola das Caldas. Já têm esse conhecimento, são ceramistas na completa aceção da palavra: conhecem a forma de preparar os barros, de cozedura, etc. Quando pensam numa peça ou recebem uma encomenda já sabem como a peça vai reagir, se vai rachar, se vai amassar, se se vai partir no forno. Aos poucos, comecei a ver que a cerâmica estava muito para além do que fazíamos cá, a nível das formas e dos acabamentos. Então fui fazendo várias pesquisas ao longo dos anos, de forma empírica, mas beneficiei muito do facto de estar aqui com o meu pai. Há vantagens e desvantagens: certas coisas que se calhar bastava perguntar a um professor para saber a resposta, eu passei semanas ou meses a tentar descobrir! Mas também nos traz esta ideia da descoberta e do gozo pessoal.
Estas peças são réplicas de cerâmicas arqueológicas, certo?
Sim. Um dia visitei o Museu D. Diogo de Sousa, em Braga, que tem uma grande coleção de cerâmicas arqueológicas. E depois fui ver a loja e tinha muito pouca coisa. Comprei os catálogos que estavam disponíveis e fui pedir uma reunião com a então diretora, a Dra. Isabel Silva. Cederam-me uma lucerna original, da qual fiz réplicas, e comecei a fazer outras reproduções. Fiz uma remessa na ordem de algumas centenas de peças e aquilo até se vendeu bem, mas depois não continuei. Eu gosto das cerâmicas arqueológicas porque os romanos, quando estiveram cá há dois mil anos, já traziam cerâmicas fantásticas de outras partes do mundo! E mesmo as do Egito, peças de há três mil anos, são belíssimas. São peças trabalhadas na roda e feitas também em molde. Eles eram exímios a trabalhar os moldes de gesso. Às vezes ouve-se: "É pá, isso é feitos nos moldes, é uma coisa moderna, uma coisa nova". Mas não é.
E ainda faz peças da sua criação pessoal.
Agora tenho aqui poucas coisas. Mas vamos ver uma coisa, eu não tenho essa vocação de querer ser artista, claramente para mim não é por aí. Concebo a cerâmica como objectos com utilidade. Tudo o que eu faço nasce da roda, com acabamentos contemporâneos, mas as formas remetem para coisas clássicas. A maior parte das coisas que faço agora é por encomenda, já há quatro ou cinco anos que é assim. Recentemente têm havido algumas alterações na forma como funcionamos, não só causadas pela pandemia, mas que já se tinham começado a verificar antes.
Que alterações são essas?
Ultimamente têm aparecido um conjunto de pessoas estrangeiras, sobretudo designers e arquitetos, que têm projetos próprios e que me apresentam desenhos para eu fazer. Nós, no início, até ficávamos um bocado assustados com os preços que essas peças envolviam, mas eles estão dispostos a pagar, querem é que se faça um trabalho bem feito. Posso falar de um caso particular, que é o Origin Made. É uma pessoa de Singapura que trabalha com designers e artesãos de vários países. Eles perceberam a riqueza do artesanato português, o facto de ainda se trabalhar com vários materiais e este lado mais ancestral de fazer as coisas. No meu caso, as peças que me encomendam são as de cozedura de louça preta, porque é algo que é muito raro, há poucos países onde se trabalha isto. São peças com um design bastante desafiante, contemporâneo, mas com esse lado do acabamento ancestral da cozedura negra. Colaboro também com a Casa Atlântica, de Barcelona.
Como é que funciona esse processo de colaboração?
Eles apresentam os desenhos e eu executo as peças. Eu percebi logo que eram peças bastante complexas, com muito trabalho e muita mão de obra, que mesmo em termos técnicos são um desafio para o oleiro. Percebi que as peças iam ficar mais caras do que o que estamos habituados. E eles disseram: "O problema não é esse, o problema é se é possível fazer isto bem feito". Eu até lhes sugeri que esse tipo de peças ficariam mais baratas recorrendo à indústria, por moldes, com a técnica de enchimento. "Pois, mas não é isso que nós queremos". A partir destas conversas comecei a perceber mais ou menos o conceito do projeto, o que eles pretendiam.
Está contente com essa colaboração?
Sim, funciona bem. Para mim é aliciante, é o lado do desafio, de perceber como vou fazer as peças.
A cerâmica tem sido alvo de muito interesse nos últimos anos. O que acha das competências das gerações mais novas? Quais as diferenças principais entre os velhos e os novos oleiros?
Há aí gente muito boa a fazer cerâmica. É certo que se vai perdendo alguma perícia na roda, porque só ao fim de quinze ou vinte anos se tem o domínio da roda. Mas também não há tanta necessidade. Antigamente, precisávamos de peças grandes, trabalhadas fininho – falo em fino porque só aí se vê a perícia do oleiro – e leves para serem transportadas à cabeça. Mas agora não há necessidade disso, portanto não se perde assim muito. Ou melhor, perde-se um pouco deste saber, mas acho que não vai fazer muita falta. Os mais novos têm muitos conhecimentos, desde logo este lado da formação artística e são capazes de conceber as suas próprias peças. Sabem desenhar, sabem pensar no uso das peças e têm o conhecimento para as executar, em que tipo de barro, que tipo de cozedura, se a função é utilitária ou decorativa, que tipo de vidrado... tudo isto é importante. Há aí muita gente boa e a cerâmica está muito em moda. Na feira de Barcelos, aparecem vários designers ainda não estabelecidos, que acabaram agora o curso, cheios de curiosidade, com vontade de experimentar: "Se eu desenhar estas peças, é capaz...?" "Sim, tudo é possível! Apareçam, mostrem os desenhos, trocamos impressões."
O que acha que mudou na olaria desde a geração do seu avô até hoje?
Quando eu comecei com o meu pai, quase há quarenta anos, ainda se faziam muitas olarias de barro vermelho, para utilizar no dia a dia: não só os vasos, mas a chocolateira, a cafeteira, os potes, ainda para cozinhar neles, as coelheiras, para criar coelhos, os comedores para os animais... Peças que tinham um design de há séculos! Hoje muitas peças já não têm a função para que foram desenhadas: dá-se um golpe aos cântaros para servirem de jarro de flores, por exemplo. Aqui ainda se continua a fazer muita olaria. Aqui em Oliveira, assim muito por alto, seguramente ainda haverá trinta homens a fazer olaria diariamente, praticamente tudo para fora de Portugal.
Tanta gente? Incrível! Para que finalidade são as peças compradas?
Vasos para plantar, muitas jarrinhas pintadas a frio, para pôr flor secas. O que se vende são sobretudo vasinhos, peças de pouco valor. Estamos a substituir os chineses, isto é real. Os holandeses são grandes clientes. Eles antes iam à China, mas agora já não compensa, fica caríssimo trazer um carregamento para cá. Esses oleiros trabalham muito, dez ou doze horas, aquilo é pago muito barato! Nós nunca nos soubemos organizar, nivelam-se os preços por baixo e as pessoas lá se sujeitam. Às vezes as pessoas pensam: é pouco mas fazemos muitas peças, assim conseguimos algum dinheiro. Mas assim continuam a ser explorados! E eu às vezes digo para pensarem duas vezes antes de aceitarem este tipo de trabalhos. É o meu lado sindicalista! [risos] Claro que na olaria eu trabalho também muito por encomendas. Eu vendi imensas destas peças: candeeiros de jardim, vasos, coelheiras... Nós – eu, o meu irmão e o meu pai – durante vários anos, éramos conhecidos e procurados por isto, era o nosso forte. Tentávamos fazer peças que podíamos vender um bocadinho mais caro, porque tinham mais mão de obra. O próprio acabamento, os cortes, exigem um lado mais delicado. O meu irmão que estava aqui comigo era bom nestas coisas de trabalho manual, de fazer cortes, de fazer desenhos. Desde cedo percebi que era bom aproveitar este lado, já que tínhamos jeito. E outros também não queriam fazer estas peças. Isto aplica-se a todos os trabalhos que fazemos: se a gente conseguir ser um bocadinho diferente do nosso colega, do nosso concorrente, pode estar aí a diferença de ganhar um bocadinho melhor e de não andar atrás dos outros.